Família síria paga US$ 10 mil para acelerar fuga de menino ao Brasil

sexta-feira, julho 19, 2013

Abdul Shakar | IKMR

Abdul-Shakar, 41 anos, vive no Brasil desde 2009 e cuidou da vinda do sobrinho de 9 anos da Síria para São Paulo. Ele pediu para que seu rosto não aparecesse na imagem. (Foto: Bruna Carvalho)

Mohammad Farid* tinha 9 anos quando viu os tanques do Exército da Síria entrando na cidade de Homs para reprimir as primeiras manifestações contra o governo do presidente Bashar al-Assad. Ele vivia com o pai entre Homs e Aleppo , duas cidades que se tornaram foco da sangrenta guerra civil de mais de dois anos do país, e teve de viajar com um desconhecido que recebeu US$ 10 mil (mais de R$ 22,5 mil) para trazê-lo em segurança ao Brasil. Hoje, aos 11 anos, Mohammad é um dos 202 refugiados sírios que tentam reconstruir suas vidas no País e superar os traumas do conflito.

“Mohammad contou histórias horríveis sobre quando estava em Homs e em Aleppo. Ele viu confrontos e matança nas ruas”, disse ao iG Abdul-Shakur*, que está em São Paulo há quatro anos e é tio do garoto. A mãe de Mohammad, Aliyyah*, que desde 2007 vive no Brasil tratando uma insuficiência renal, passou por cinco meses de espera e angústia até que seu filho conseguisse chegar a São Paulo a salvo.

Mohammad é uma das cerca de 675 mil crianças com menos de 11 anos que, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), tiveram de deixar a Síria desde 2011. Segundo anunciaram autoridades da ONU na terça-feira (16), a guerra deixa cerca de 5 mil mortos por mês , com o fluxo de 1,8 milhão de refugiados sendo considerado o pior desde o genocídio de Ruanda, em 1994.

O Brasil recebe uma pequena parte dessa porção de refugiados sírios. Por causa da distância de mais de 10 mil quilômetros que separam os dois países, a maioria acaba buscando abrigo em nações perto da fronteira, como Líbano, Jordânia, Egito, Turquia e Iraque. Ainda assim, é possível perceber um crescimento vertiginoso da chegada de sírios ao País a partir de 2011, quando o conflito teve início.

“Em 2012, a Síria foi a terceira nacionalidade de refugiados reconhecidos (no Brasil) atrás da Colômbia e da República Democrática do Congo. No total, temos 202 solicitantes de refúgio, dos quais 189 chegaram aqui por causa do conflito, sobretudo entre 2012 e 2013″, relatou Andrés Ramirez, representante da Acnur no Brasil.

As solicitações de refúgio de sírios no Brasil foram registradas em 23 cidades diferentes, sendo a maioria em São Paulo (95), Florianópolis (17), Dionísio Cerqueira (SC, 16), Brasília (DF, 13), Rio de Janeiro (12) e Curitiba (10).

Ramirez aponta entre os fatores internos que atraem o fluxo desses refugiados a presença de estimados milhões de sírios no Brasil, que passaram a vir para o País em ondas migratórias que datam do fim do século 19, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Os sírios acabam se relacionando com as associações e organizações (presentes no Brasil) e muitos deles não necessariamente solicitam refúgio”, afirmou Ramirez.

O status de refúgio é um direito garantido pela Convenção da ONU de 1951, confirmado pela lei brasileira 9.474, de 1997. Ele pode ser solicitado por qualquer estrangeiro que tenha temor de perseguição por motivos de raça, religião, opinião pública, nacionalidade ou por pertencer a um grupo social específico. Além disso, pode ser requisitado por aqueles que tenham sido obrigados a deixar seu país de origem por causa de violações de direitos humanos praticados de forma generalizada.

Segundo Ramirez, no momento em que o estrangeiro solicita o refúgio no Brasil ele passa a ter direito de acesso aos serviços básicos universais, como saúde e educação. O órgão responsável pelas solicitações de refúgio é o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), presidido pelo Ministério da Justiça, que trabalha com parceiros da sociedade civil, como a Cáritas em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Manaus, que buscam dar orientação jurídica aos refugiados.

Caminho traumático até o Brasil

Foi por meio da Igreja Ortodoxa Síria Santa Maria, instituição que apoia a integração de refugiados do País em São Paulo, que Abdul-Shakur soube do trabalho da Cáritas e entrou com o pedido de refúgio para Mohammad. Hoje, o garoto possui documentos e direitos como qualquer outra criança brasileira. Mas o caminho percorrido por Mohammad para alcançar essa condição foi longo e traumático.

Segundo relata Abdul-Shakur, em 2011 bombardeios quase atingiram a casa onde Mohammad morava em Homs. Foi então que o pai decidiu que o garoto não poderia mais viver na cidade e, no fim de maio de 2011, o enviou para Al-Hasakah, no norte da Síria, onde alguns tios se propuseram a cuidar dele e preparar sua viagem ao Brasil. Os parentes nunca mais tiveram notícias sobre o paradeiro do pai de Mohammad.

Parte dos 10% de cristãos da Síria, a família de Mohammad vivia no norte do país árabe antes de se mudar para São Paulo. Os primeiros a chegar na capital paulista foram Alliyah, acompanhada de seus pais em 2007. Dois anos mais tarde, foi a vez de Abdul-Shakur abandonar a Síria com sua outra irmã. O farmacêutico que chegou a montar um restaurante no bairro de Moema, zona sul da capital, afirma que, antes do conflito, a Síria era um lugar tranquilo, onde se caminhava pelas ruas após a meia-noite sem temor de assaltos.

Abdul-Shakur diz, porém, que era possível perceber sinais crescentes da presença do radicalismo islâmico no país, o que, segundo ele, colaborou para sua vinda para São Paulo em 2009. “Dava para sentir. Quando você vive na boca do vulcão, ele pode ficar tranquilo por muito tempo. Mas você sabe que é a boca de um vulcão e que vai explodir a qualquer hora”, contou.

Com o português ainda sem fluência, Abdul-Shakur fala em “confusões” ao se referir aos confrontos nas ruas entre as tropas do governo e grupos de extremistas islâmicos, que atualmente compõem um dos grupos que formam a heterogênea oposição que luta pelo fim do governo Assad. Para ele, os cristãos sentiam-se protegidos pelo regime alauíta (ramo do xiismo) e, com a instabilidade, há o temor de que grupos radicais tomem o poder. “Para nós, ( a revolta ) foi o pior. Perdemos tudo, nossas propriedades, não dá para vender nada. Não vale nada. Não dá para saber o que vai acontecer.”

Ao chegar a São Paulo, Abdul-Shakur acompanhou a deterioração da saúde de Alliyah. Ela teve que tirar os dois rins, fazer um transplante e submeter-se a sessões de hemodiálise, o que fragilizou sua saúde e a obriga até hoje a passar temporadas internada no hospital. Mas em 2011 ela ficou em seu pior estado diante da incerteza do que poderia acontecer com seu único filho.

Por causa da ausência dos pais, Mohammad não poderia tirar um passaporte e obter um visto para deixar a Síria pelas vias oficiais. Para que isso fosse possível, a mãe teria que, do Brasil, enviar uma procuração para dar entrada no pedido dos documentos.

Para não ter de esperar mais, a família, então, pagou cerca de US$ 10 mil para que uma “pessoa com comunicações” arranjasse documentos e acompanhasse Mohammad na viagem de três dias entre Al-Hasakah e Foz do Iguaçu, no Paraná, onde Abdul-Shakur aguardava a chegada do sobrinho. “Hoje Mohammad já é quase um brasileiro. Nem comida síria ele come quase. Gosta mais de arroz e feijão. E é são-paulino roxo”, comentou, entre risos. “Pior que a mãe é corintiana e os dois vivem brigando.”

Como qualquer outra criança da sua idade, Mohammad gosta de passar o seu tempo livre jogando videogame. Segundo o tio, que vive com o garoto em uma casa no bairro do Ipiranga, na zona sul, ele raramente comenta da guerra ou do pai. “Mas já notamos que toda vez que a gente assiste à televisão e tem notícias sobre a Síria ele não gosta. Quer fugir, não quer lembrar.”

Fonte: IG – último segundo

 


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