As descrições do campo de refugiados de Zaatari, na Jordânia, quase sempre relatam um grande mercado público que abriga uma multidão de pessoas fugindo da guerra do outro lado da fronteira, na Síria. Com uma rua principal, vendedores de frutas e legumes, utensílios domésticos e roupas disputam lado a lado cada cliente. A eles, juntam-se o pouco entretenimento acessível aos refugiados sírios, cafeterias com o tradicional narguilé, onde homens e mulheres fumam e assistem às notícias e o desenrolar da guerra civil na Síria.
Natural de Brasília, Yara Romariz Maasri, 29 anos, trabalha no escritório da Agência para Refugiados da ONU (Acnur) em Amã, capital da Jordânia, na coordenação da resposta humanitária aos refugiados sírios. “Somos 60 agências diferentes nesta unidade que coordena as ações humanitárias de diversas agências da ONU, ONGs locais e internacionais. Minha função é dar o apoio aos setores de segurança alimentar e saúde”, disse ela a VEJA.com.
Filha de mãe brasileira e pai libanês, Yara se formou em Literatura Inglesa pela Universidade St. Andrews, na Escócia, e obteve um mestrado em Estudos de Migração Forçada pelo Centro de Estudos de Refugiados da Universidade de Oxford, na Inglaterra. Trabalhando desde 2008 com refugiados para diversas agências humanitárias internacionais, a brasileira passou por países como Camarões, Quênia e Líbano. “Trabalhei com refugiados iraquianos, centro-africanos e somalianos nestes países”, contou a brasiliense.
Segundo dados da Acnur, a Jordânia abriga mais de 550 000 refugiados sírios registrados com a agência. Zaatari, que também é um vilarejo jordaniano, abriga uma população que em torno de 145 000 pessoas – a quarta maior cidade do país. Com uma área de cerca de 8,75 km2 (área equivalente ao bairro Vila Mariana em São Paulo) e localizado no norte do país, perto da fronteira com a Síria, o campo foi inicialmente projetado para receber cerca de 60 000 sírios, mas o grande fluxo diário de refugiados fez com que a população crescesse rapidamente, gerando problemas como falta de comida e melhores acomodações.
Densidade alta – Fixada em um escritório de assistência a refugiados em Amã, Yara recentemente esteve em Zaatari para uma reunião sobre o setor de saúde no campo. Segundo ela, os postos das organizações humanitárias ficam na entrada do campo. “A maioria das pessoas que trabalham em Zaatari mora em Amã, vão e voltam todos os dias, em uma viagem que dura de uma hora e meia a duas horas cada trecho”.
“Minha visita a Zaatari foi rápida, já que é um lugar muito grande e com uma densidade populacional bastante alta. Embora já tenha chegado a 145 000, a população, hoje, gira em torno de 100 000. Muitos sírios voltam para a Síria ou vão morar em outras partes da Jordânia”, explica. Segundo ela, a maioria dos refugiados mora em casas pré-fabricadas, em forma de contêineres, enquanto os recém chegados ficam abrigados em tendas doadas pela Acnur. “Muitas destas casas são doadas pelos países do Golfo, mas em meses recentes as doações têm sido menores. Algumas pessoas transportaram suas casas para diferentes partes do campo e as converteram em lojas”.
Por trás das estatísticas – Manter a dignidade e a consciência de que vidas estão em jogo são, segundo Yara, os maiores desafios para quem trabalha em meio a crises emergenciais. Para a brasileira, é preciso evitar que os refugiados virem apenas estatísticas em meio a tantas histórias parecidas. “Por exemplo, uma das coisas que eu tinha que fazer quando entrevistava pessoas era perguntar sobre os membros da família. Aquilo virou rotina, era apenas um passo na lista de coisas que eu tinha que perguntar. E as pessoas vão contando que perderam o pai, a mãe, irmãos, marido, filhos. E eu anotando tudo, sem pensar duas vezes. De vez em quando, você acorda e percebe o que as pessoas estão contando”, revelou ela.
Yara explicou que é normal os agentes humanitários tenderem a usar um mecanismo de proteção porque, caso não haja nenhuma barreira e se permitam sentir tudo que se passa ao redor, “o desgaste é enorme”. Outra dificuldade, segundo ela, é ver a diferença entre a realidade e a percepção das pessoas quanto aos refugiados, como relatos da mídia falando no número de sírios e como a presença deles afeta negativamente os países em que eles se encontram, tirando os empregos da população local. Para ela, essa situação de destaque do lado negativo da presença de refugiados nos países é frustrante porque ninguém vira refugiado por que quer. “Ninguém atravessa uma fronteira, caminhando por duas semanas, com crianças a tiracolo, deixando tudo que construíram durante uma vida inteira para morar em uma tenda no meio do deserto. A falta de empatia por eles às vezes me choca”, desabafou.
A agente humanitária enfatizou também que os refugiados não são apenas uma massa homogênea de pessoas desassistidas que só precisam de ajuda. Muitos, segundo ela, possuem habilidades e querem trabalhar, ajudar. “Em Zaatari, os sírios montaram um mercado onde se encontra de tudo, de pássaros a celulares, além de vestidos de noivas e outros produtos. A rua se chama Champs Elyseé (como a famosa avenida de Paris) por causa da presença de um hospital militar francês”, conta Yara. “A vida continua em um campo de refugiados, com pessoas querendo trabalhar, estudar, continuar a viver, se preparando para um dia voltar para seu país ou, se for o caso, seguir para outro”.
A Síria enfrenta uma violenta guerra civil desde março de 2011. Os choques entre grupos rebeldes que tentar derrubar o regime do ditador Bashar al-Assad e forças do governo já provocaram a morte de 100 000 pessoas, segundo estimativas das Nações Unidas. O número de refugiados em países vizinhos já chegou a mais de 2 milhões. Dentro das fronteiras da Síria, cerca de 9 milhões de pessoas necessitam ajuda humanitária.
Fonte: VEJA.com