Talvez já estivesse morto, e este fosse o seu inferno. Mas sentia que, fisicamente, seguia vivo. Sabia disso quando era açoitado por não cumprir uma ordem ou quando passava noites em claro, entre prantos e soluços, até que alguém aparecesse em seu cárcere – ou quarto – e lhe arrancasse de lá para mais um treinamento de formação de soldado da guerra que não sabia que era sua.
Seus pensamentos estavam confusos, como em todos os outros dias, desde que chegou àquele lugar remoto da Somália. Ou talvez fosse do Sudão, já não tinha mais ideia de onde estava. Não entendia por que seus pais tiveram que entregá-lo ao “exército”. Não lhe queriam mais? Não. Isso não era possível. Era o mais velho de cinco irmãos, mas sabia que tinha um lugar especial no coração de sua família. Deveria ter alguma razão. Provavelmente o motivo veio quando toda a sua aldeia teve que oferecer ao exército uma quantidade de crianças, em troca de estar a salvo de ataques. Ele estava nesse grupo, assustado e desnorteado, como todos os outros que lhe acompanhavam.
Fora recrutado contra a sua vontade e por medo de morrer dolorosamente, assim como tantos outros meninos e meninas naquele lugar. Sim. Meninas também estavam aqui, ele pensava. Mas não entendia por que cada uma tinha que acompanhar a todo tempo um dos soldados adultos e ficar em suas cabanas. Talvez devesse ter nascido menina, provavelmente não estaria ali segurando um rifle apontado para alguém.
Em meio aos seus pensamentos, ele ouvia seu comandante gritar e sentia alguns murros. Já estava demorando demais, se não atirasse logo seu destino tomaria o mesmo lugar da outra criança, que aguardava, aterrorizada e impotente, pelo seu momento.
Ele não conseguia mais levantar a arma. Sentia os braços magricelas tremerem. Por que estava ali? Por que tinha que fazer isso? Por que era obrigado a matar, torturar, beber sangue e viver longe de sua família, tendo que se transfigurar em soldado de uma guerra que não compreendia? Tinha que se tornar homem às pressas.
Ele fraquejou uma última vez antes de ouvir o barulho do gatilho. Bum. Estava feito. Finalmente, a morte de seu corpo se unia à da sua alma. Talvez agora pudesse encontrar a paz de sua guerra imposta. Nunca mais voltaria a ser criança, mas isso não fazia mais diferença, os horrores escritos a sangue em sua mente lhe perpetuariam, se não na vida, todo o resto de sua morte.
Este poderia ser o relato de uma criança africana, entre mais de 250 mil outras, segundo a organização War Child, tiradas de seus lares para serem recrutadas ao redor do mundo por grupos rebeldes, pelo exército do Governo, enfim, por pessoas que se esqueceram de suas crianças interiores há muito tempo e lutam uma guerra que insistem ser de todos.
A Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu uma meta de acabar com crianças soldado em qualquer lugar do mundo até 2016. Desde o ano passado, Sudão, Myanmar, Somália, República Democrática do Congo, Afeganistão e Chade já assinaram planos de ação com a organização para combater esta realidade. Mas mesmo que ainda faltem tantas outras regiões, nestes mesmos países ainda podem ser encontradas estas crianças. Recrutadas à força e negadas de suas infâncias.
Por este motivo, inúmeras crianças continuam fugindo de seus países, de seus algozes e de seu recrutamento involuntário, assustadas com o futuro que lhes é reservado. Sozinhas ou com pequenas ajudas, alcançam outros países como refugiadas, assistidas, daí, pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), em busca de uma vida mais normal, mesmo que suas infâncias nunca mais sejam restituídas.
No Brasil, o ACNUR já recebeu crianças soldado de alguns países da África, a exemplo de Angola, Burkina Faso e República Democrática do Congo. Assim como tantos outros escravos africanos foram privados de suas vidas e levados até o Brasil, elas também atravessam oceanos, mas, desta vez, em busca de um recomeço e de proteção aos horrores que não deveriam nunca ter vivenciado.
*Texto baseado em relatos de crianças refugiadas da guerra que nunca começaram.