1 – Casamento no campo
Os bombardeios frequentes forçaram Youssef Ahmed Mohammad, de 23 anos, a trocar Khirbet Ghazaleh pelo campo de Zataari, na Jordânia, em junho passado. No mercado, entre as tendas, ele avistou Samah al-Saud, de 24 anos. E conta ter visto um lampejo de beleza em meio à miséria da vida como refugiado. Quando soube que a jovem era da mesma cidade, a família entrou em ação para investigar. Dois meses depois, eles se casaram numa cerimônia improvisada, sem valor legal: não havia clérigo ou autoridade civil.
— Estou feliz por ter casado, mas felicidade mesmo será voltar ao meu país. Eu não quero ter filhos nesta vida. É melhor morrer sem ter filhos na Síria do que trazê-los ao mundo como refugiados — diz Mohammad.
2 - Medo de morrer longe de casa
Abdul Rahman Ahmed nasceu no Império Otomano. Completou 105 anos e há pelo menos 42 não tem dentes na boca.
— Minha esposa tirou-os com beijos — diz, bem-humorado.
Ele calcula ter tido seis mulheres, nove filhos, mais de 100 netos e pelo menos 150 bisnetos. Viveu quase toda a vida no vilarejo de Elmah, na Síria, onde trabalhava na lavoura, cuidando de trigo, lentilha, grão de bico e melancias. A guerra veio, a casa foi destruída por bombas lançadas por aviões do regime de Bashar al-Assad, e desde janeiro o ancião mora numa pequena tenda no campo de Zaatari, na Jordânia. Ele não usa óculos, não se preocupa com a saúde e nem aspirina toma — embora não dispense muitas balas, muitos copos de café preto forte e três maços de cigarro por dia.
Ele usa uma cadeira de rodas para se locomover pelas ruas poeirentas, mas gosta de dar alguns passos para fazer exercício. Sempre sorrindo e cercado de gente, Ahmed faz piadas e conta o segredo de sua longevidade:
— As chaves para a vida longa são cereais integrais, azeite de oliva, tabaco e Deus.
Mas ele confessa uma tristeza.
— Quando você sai de seu país é muito difícil. Aqui está ok, mas eu vivi na Síria por 104 anos, toda a minha vida na mesma vila. Mas, se eu tiver que morrer na Jordânia, morrerei na Jordânia — resigna-se.
3 - Ratazanas são distração de crianças
Um ano atrás, Fathiya Ahmed, de 45 anos, vivia numa casa limpa e tranquila em Aleppo. O marido, motorista de táxi, ganhava pouco, mas o bastante para sustentar a família, até que estilhaços de uma bomba atingiram-no na cabeça. Ahmed morreu na hora. A família decidiu fugir. Hoje, ela divide um quarto com quatro filhas e dois filhos num abrigo improvisado em Gaziantep, na Turquia. Ratazanas passeiam entre os netos dela: as crianças gritam, mas cutucam o bicho com um pedaço de pau. Chuva, lama, fome e ratos são parte da rotina.
— Ficamos tristes por estar vivendo assim. Deixamos tudo para trás. E seja lá o que fosse, era melhor que isso — conta.
Um lojista turco distribui entre os refugiados sobras de tomates. Num fogão improvisado, viram um purê que alimenta a família:
— Pelo menos as ratazanas não gostam, é ácido demais para elas.
4 – Idas e vindas
A família deixou a cidade de Homs sob fortes bombardeios em março de 2012 e hoje encontrou refúgio num shopping abandonado em Balamand, no Norte do Líbano. Mas a jornada não tem sido fácil. Ahmad al-Khalid foi diagnosticado com câncer aos 3 meses de idade. O menino perdeu o olho esquerdo para o câncer antes mesmo de seu primeiro aniversário. Agora, prestes a completar 2 anos, sua mãe teme que ele perca o outro olho: refugiados não têm acesso à saúde gratuita no Líbano.
A mãe decidiu então se arriscar para levar o pequeno para se submeter ao tratamento de quimioterapia em Damasco onde, curiosamente, o mesmo regime que bombardeia escolas e hospitais ainda provê assistência médica gratuita.
— Eu faria qualquer coisa pelos meus filhos — garante.
Os dois se arriscaram e fizeram várias visitas à capital síria. De volta ao Líbano, os médicos dizem que a situação da criança está estável há alguns meses.
Quando a família respirava um pouco mais aliviada, outra bomba: o irmão mais velho, Mohammad, de quase 4 anos, também teve descoberto um câncer no olho. Ele está recebendo tratamento com laser pago por uma instituição de caridade. E usa um óculos de plástico azul que ganhou de presente dos médicos.
5 - Renda cai de R$ 12 mil a R$ 700
Aos 34 anos, Munir Khaltoum estudou Engenharia Elétrica. Na sua Aleppo, construía casas e hospitais, empregava 80 pessoas e ganhava R$ 12 mil por mês. Em janeiro passado, ele teve a casa bombardeada e fugiu com a mulher, grávida de oito meses, para outro vilarejo, onde viviam parentes. Mas a violência os perseguiu, e a saída foi cruzar para a Turquia. Com os cabelos grisalhos, hoje ele trabalha ao lado de outros 20 refugiados sírios como costureiro. As jornadas de 11 horas lhe rendem cerca de R$ 700 por mês — metade do que recebem os funcionários turcos.
— Perdi tudo, mas posso compensar com trabalho duro — diz ele, que paga R$ 600 no aluguel do apartamento que divide com os quatro filhos, a esposa e a família dela, 11 pessoas no total.
6 - Memória da guerra gravada no nome
Hanana Assaad, de 32 anos, já tinha tido seis filhos, mas, em maio, teve medo de perder o sétimo. Pouco depois de fugir do vilarejo sírio de al-Nawa, ela viu sua bolsa estourar. Andou com dificuldade até a clínica da ONU no campo de Zaatari, na Jordânia, e esperou muito para ser atendida. O bebê estava nascendo três semanas antes do tempo, e ela se culpava: na Síria, comia frutas e legumes. No campo, só arroz e lentilhas. Além disso, estava tensa e insone.
— Tive medo de perdê-lo por causa do estresse das bombas, dos tiros e da fuga — conta.
Apesar de tudo, o pequeno Khalid Nedhal al-Saawdeh nasceu saudável. Quando as enfermeiras disseram que era um menino, Hanana sorriu pela primeira vez desde que ali chegou. Ela vinha rezando por um filho homem para homenagear o tio do marido, levado de dentro de casa pelas forças do regime sírio.
Fonte: Globo