O grupo psicoterapêutico aberto do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, antigo Hospital Júlio de Matos, foi pensado para as pessoas sem-abrigo, mas tem acolhido várias dezenas de refugiados, pessoas “com grandes sofrimentos”, vindas das mais diversas partes do mundo.
O grupo psicoterapêutico do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL) existe desde 2002, dedica-se a “situações particularmente vulneráveis e em grande crise” e já de há algum tempo que também vão aparecendo refugiados.
Para o responsável pelo grupo, o psiquiatra e director do Serviço de Psiquiatria Geral e Transcultural do CHPL, António Bento, é “um mistério” como é que estas pessoas chegam a Portugal, apesar de não ter dúvidas sobre por que é que chegam ao grupo: “Bem ou mal não temos concorrência”.
Mohammad Motamedi é um dos muitos casos. Iraniano, 23 anos, foge do Irão com a família, mas acaba separado dos pais, que vão para o Reino Unido. Sozinho em Portugal, está à espera há mais de seis meses por um título de refugiado. Depois de uma tentativa de suicido é encaminhado para o grupo psicoterapêutico.
O psiquiatra afirma que, no caso dos refugiados, a realidade supera a ficção e diz que é através destas pessoas que muitas vezes toma conhecimento do que se passa pelo mundo.
Em conversa com a Lusa vai desfiando os casos que já lhe passaram pelas mãos, admitindo, no entanto, que, apesar da curiosidade que o assola de cada vez que recebe uma pessoa de um país que não conhece, uma das coisas que já aprendeu é a não ser “bisbilhoteiro”.
Soube da reactivação da guerra do Congo pelos pacientes desse país, quando eles começaram a aparecer no serviço e foi através do relato de um deles que viu uma parte daquela guerra.
“O indivíduo estava numa aldeia onde se confrontavam as duas partes e as duas partes queriam-no porque ele era um indivíduo muito bem constituído, mas ele andava a ver se se safava. A uma dada altura, uma das partes foi lá e ele viu matarem-lhe a mulher e os filhos e ele fugiu”, relatou.
Chega ao CHPL porque não consegue dormir. Quando adormece ouve uma voz que o chama e tem a imagem do filho a morrer e a chamar por ele.
“Dei-lhe medicação, um pequenino alívio nocturno e isso fez toda a diferença. Ficou a achar que Portugal é o paraíso na Terra”, apontou o psiquiatra.
Lembra-se de em 2008 ter tido conhecimento da guerra na Ossétia do Sul, uma região do Cáucaso que se tornou independente da Geórgia, quando lhe apareceram guerreiros da Abecásia, outra região do Cáucaso que também se declarou independente em relação à Geórgia.
Explica que, apesar destes refugiados terem passado horrores, não é obrigatório que se tornem doentes psiquiátricos.
“Ainda há dias recebi um do Paquistão, a quem mataram a família toda, e ele tem uma saúde mental excelente. Não achei que ele precisasse dos nossos cuidados”, exemplificou.
Define esse fenómeno como um “mistério da natureza” e explica que, às vezes, “com uma pequenina ajuda, um banal tranquilizante” se muda a vida de muitas destas pessoas.
“Não precisamos de muito tempo para fazer a diferença e trazer o alívio à vida destas pessoas”, garante.
Conta depois o caso de um asiático a quem mataram a avó, violaram a mulher e depois também o violaram a ele.
“Era um combatente chefe e diz que conseguiu fugir de um buraco onde estava amarrado com uma corrente a um pneu de camioneta”, diz António Bento.
Depois há também o caso “Romeu e Julieta”, como António Bento lhe chama. Um casal muçulmano que foge do seu país porque, não sendo casados, corriam o risco de serem mortos.
Vêm para Portugal, mas cá são também separados e agora ameaçam suicidar-se se não os deixarem ficar juntos.
“São pessoas com grandes sofrimentos, mas não temos refugiados psicóticos. Temos sobretudo refugiados que sofreram horrores e têm as consequências desses horrores, mas que mantêm a sua lucidez e são fortes para não se terem esmagado com o que lhes aconteceu”, remata António Bento.
Fonte: Lusa/SOL