O ugandense Moses Otiti tinha 15 anos, e caminhava com seu pai e outras pessoas, quando insurgentes do Exército de Resistência do Senhor (LRA) os emboscaram em 2003. Por ser criança, foi o único que sobreviveu. Durante os 12 meses seguintes, foi obrigado a engrossar as fileiras do LRA e combater contra o governo de Uganda. “Não me mataram porque buscavam gente jovem, para incorporar na luta contra o governo”, contou Otiti à IPS.
Muitas guerras atuais são travadas dentro das fronteiras de um Estado, e isso facilita que se imponha a inquietante tendência de fazer as crianças guerrearem. Nos conflitos onde esse fenômeno está presente há mais probabilidades de serem cometidas atrocidades, afirmam pesquisadores.
“As crianças não têm a mesma capacidade de um adulto para tomar decisões ou para entender o certo e o errado”, ponderou à IPS Shelly Whitman, diretora da Iniciativa Roméo Dallaire sobre Crianças-Soldado. “Estão em uma fase na qual são muito impressionáveis, e ainda estão formando sua identidade e sua orientação moral”, ressaltou.
Segundo Whitman, “também é importante observar a economia, o desenvolvimento e a dinâmica social”. Quando se chega ao grau de recrutar menores é “porque há uma grande quantidade de problemas, e é possível que permitir que isso ocorra aprofunde ainda mais a degradação social”, acrescentou.
Otiti descreve a violência como um aspecto crucial do recrutamento. Os rebeldes do LRA ameaçaram matá-lo, como ao seu pai, se não se unisse a eles. “Eles batem até a gente quase morrer, e se você sobrevive significa que pode ser um soldado. Mas, se morre, significa que não teria sido um bom combatente, e esse, no final, teria sido seu fim de todo modo”, contou à IPS.
Os chefes preferem os menores porque é mais fácil manipular sua psicologia para que participem de atrocidades em massa. A consequência disso é que as crianças-soldado no Camboja do Khmer Vermelho (1975-1979) se comportaram mais desapiedadamente com os civis do que com os combatentes adultos, disseram Jo Boyden e Sara Gibbs em seu livro Children of War (As Crianças da Guerra).
“As crianças são particularmente afetadas pela violência excessiva porque se manifesta em uma etapa crucial do desenvolvimento do ser humano”, disse à IPS Marie Lamensch, assistente do diretor do Instituto de Montreal para os Estudos sobre Genocídio e Direitos Humanos (MIGS). “O contexto em que cresce uma criança afeta seu desenvolvimento cognitivo e afetivo. Os meninos-soldado, matem ou não, estão expostos à violência física e verbal, e submetidos ao temor e à falta de defesa. Esse trauma influirá na maneira como reagirá ao seu entorno, agora e no futuro”, acrescentou.
Isso não significa que as crianças careçam de moral. As crianças recrutadas pela força “conservam seus princípios morais nas primeiras semanas após o sequestro e sabem que o que estão fazendo é errado, mas, quanto mais matam e mais violam, sua consciência vai se desligando”, pontuou à IPS Moses Makasa, diretor de desenvolvimento na Watoto, uma organização ugandense que ajuda a reabilitar crianças-soldado como Otiti.
Otiti recordou que passou por um processo semelhante. “No primeiro mês, eu não estava cômodo com as coisas que estavam acontecendo, mas então cheguei a uma situação onde tudo se tornou praticamente normal”, afirmou. “Quando me uni ao LRA, realmente senti que o que eles faziam não era certo, mas depois esse pensamento foi desaparecendo da minha mente. Mas nunca me agradou”, contou. E foi essa volátil distinção entre o bem e o mal que fez com que a vida no LRA fosse mais suportável, acrescentou.
Vários conflitos atuais mostram a relação direta entre recrutamento de menores e potencial de crimes de lesa humanidade. No Sudão do Sul e na República Centro-Africana “estão ocorrendo graves violações dos direitos humanos e há grande perigo de atrocidades em massa”, disse o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, em uma reunião da Assembleia Geral, no dia 17 de janeiro. No dia 4 de fevereiro, a ONU publicou um informe especial sobre o uso de crianças na guerra civil da Síria.
As crianças-soldado são “a ferramenta de alerta (de atrocidades em massa) mais facilmente identificável”, disse o senador canadense Roméo Dallaire, que em 1994 comandou a missão de paz da ONU em Ruanda e é fundador da iniciativa que leva seu nome. Em 2002 entraram em vigor o Protocolo Facultativo da Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à participação infantil nos conflitos armados e o Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional.
Os dois instrumentos colocam na ilegalidade a participação de menores de 18 anos em hostilidades e tipificam como crime de guerra o alistamento, recrutamento ou uso de menores de 15 anos em hostilidades. Em 2004, o Conselho de Segurança da ONU também condenou por unanimidade o uso de crianças-soldado.
Desde que Otiti escapou do LRA, durante um confronto armado com as forças do governo, trabalha para reconstruir sua vida, e agora estuda medicina. “Quando ainda estava no LRA, havia certas coisas que eles faziam, como matar pessoas, e assim era como eu entendia as coisas. Mas quando voltei para casa realmente mudou o valor que dava às vidas das outras pessoas. Cada vida é muito importante”, enfatizou à IPS.
“Essas crianças que tanto sofrem hoje são os que vão sanar suas sociedades ou repetir a violência dessas sociedades na próxima geração”, destacou, em fevereiro, Anthony Lake, diretor-executivo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Se o mundo não abordar seriamente a educação e a reabilitação dessas crianças “perderemos gerações”, alertou.
Fonte: IPS