Subjugados pela fome e dominados pelo inimigo, os rebeldes sírios de Barzeh, um subúrbio de Damasco, renderam-se finalmente ao inevitável e aceitaram um cessar-fogo com as forças do Presidente Bashar al-Assad que as cercam. É uma de várias tréguas acordadas em redor da capital, permitindo o regresso de uma aparência de normalidade em alguns distritos e levando o Governo a anunciar o sucesso de um “processo de reconciliação” com os combatentes sírios – os jihadistas estrangeiros não estão abrangidos.
Mas em Barzeh a trégua acordada em Janeiro sabe a derrota para os rebeldes que em tempos esperaram tomar a capital, derrubar Assad e vencer um conflito que entra agora no seu quarto ano.
O cerco do Exército a Barzeh, parte de uma campanha nacional contra os bastiões da oposição a que alguns responsáveis sírios se referem como “fome até à submissão”, desgastou os rebeldes.
“Eles sabiam exactamente quando deviam propor o acordo de tréguas”, diz Abu Yahya, um porta-voz dos rebeldes. “Estávamos esgotados. No final já não tínhamos homens suficientes. Os rapazes estavam exaustos por turnos de 24 horas de patrulhas, além dos combates”, disse ao jornalista da Reuters que visitou Barzeh na semana passada. “Estávamos esfomeados, e apesar de continuarmos empenhados, psicologicamente estávamos exaustos”.
As ruas do bairro, 5km a norte do centro de Damasco, foram pulverizadas pelos raides aéreos e pelos combates que, no auge da violência, deixaram os mortos abandonados nas ruas durante dias, contam os habitantes. Agora, a comida e os medicamentos, até há poucas semanas desesperadamente escassos, chegam ao bairro de forma relativamente livre e algumas famílias que tinham fugido regressaram, ainda que muitas encontrem as suas casas em ruínas.
Cessar-fogos idênticos foram acordados noutros subúrbios de Damasco, incluindo em Muadamyia (a oeste), Qudsaya (a norte), Yalda, Beit Sahm, Yarmouk e Babilla (a sul). Responsáveis do Governo dizem que os combatentes locais podem ser abrangidos por uma amnistia ou mesmo reintegrados nas forças do regime.
A mensagem subjacente é a de que os sírios vão conseguir resolver a catastrófica guerra civil por eles próprios, sem necessidade de mediação internacional ou sem que Assad tenha de fazer concessões aos seus inimigos. Um discurso reforçado pelos indícios de que Assad vai candidatar-se às presidenciais previstas para o Verão e pela visita, nesta semana, a um refúgio para deslocados nos arredores de Damasco, onde garantiu a uma audiência festiva: “O Estado é para todos os sírios”.
Tréguas frágeis
Os combatentes de Barzeh engoliram um sapo ao aceitar as tréguas. “Muitos rebeldes estavam gravemente feridos e nos últimos meses o cerco tornou-se tão difícil que não conseguíamos enviar para cá nenhuma ajuda médica nem comida para os ajudar”, conta Abu Yahya. Perto de 120 rebeldes, de uma força que chegou a ter 700 homens, foram mortos em dois anos de combates naquele subúrbio.
Nas várias zonas onde foram negociadas tréguas, o Exército manteve-se afastado, em troca de gestos simbólicos como a troca do estandarte da rebelião pela bandeira nacional que simboliza o apoio a Assad.
As tréguas são frágeis – em Qudsaya o Exército voltou a impor o cerco – e deixaram muitos assuntos por resolver, como é o caso do futuro dos combatentes que continuam nas zonas rebeldes ou a libertação dos que foram detidos.
Mas para as forças governamentais em redor de Barzeh os benefícios são claros. Puderam concentrar forças noutras zonas e conseguiram acesso ao bairro vizinho de Ish al-Warwar, onde vivem muitas famílias de militares que há vários meses estavam impedidas de chegar ao centro de Damasco por causa dos combates. “Os nossos líderes são génios ao terem proposto este cessar-fogo”, disse um agente dos serviços de informação ouvido durante a conversa com um taxista em Damasco. “Transformámos os rebeldes em coelhinhos na palma das nossas mãos.”
Durante a visita a Barzeh, vários rebeldes mantinham-se nos postos de controlo, calmos mas olhando com desconfiança para os estranhos. Quase todos tinham armas, uns estavam vestidos com uniformes rebeldes outros com roupas civis. Vários andavam com ajuda de muletas.
Mas quase toda a gente desconfia do acordo porque a principal reivindicação dos rebeldes continua por cumprir. “Continuamos a querer os nossos presos. O cessar-fogo é bom, mas precisa de ser aplicado. Os que foram presos são nossos filhos e estão presos injustamente”, disse um líder da comunidade que se identificou apenas por Haji. Questionado sobre o que espera, agora que não há qualquer sinal de que o Governo de Assad vá ser derrubado, encolheu os ombros: “Só tememos Deus. Acreditamos que Deus tem um plano para os tiranos”.
A “rua da Morte”
Mas pelo menos para uma família de Barzeh a trégua permitiu o regresso à casa de onde fugiram há um ano. “Esta era chamada a rua da Morte”, diz a mãe, que pediu apenas para ser identificada como Rana, apontando para a avenida principal. “Os corpos jaziam aqui durante dias, ninguém podia vir cá busca-los e os cães desciam das colinas para os vir comer”.
Enquanto anda aponta caras conhecidas. “Este é o pai de um rapaz que abateu um sniper muito perigoso antes de ser morto. E a este o filho morreu por isso abriu as portas de casa aos rebeldes”, diz. “Aquele ali costumava trabalhar como actor antes de se juntar aos rebeldes.”
Pára em frente às ruínas de uma casa de traçado árabe, onde um gato vadio anda em passinhos entre paredes caídas. Aqui era a casa de uma cunhada antes do início dos raides aéreos e dos disparos da artilharia do Governo estacionada nos montes em frente. “Oh meu Deus! A casa desapareceu”.
Noutras partes de Barzeh, a vida parece regressar aos poucos. Algumas pessoas sentam-se na rua a comer shawarma de galinha com molho de alho de uma loja que reabriu no mês passado. O talho na porta ao lado também reabriu e agora que o cerco foi aliviado recebe carne, apesar de nem tudo passar. “Telefono a um tipo para comprar a cabeça de uma ovelha e ele vai ao matadouro e envia a carne para cá”, diz o dono. “Mas no caminho há muitos postos de controlo e Às vezes eles ficam com alguma carne. Hoje ficaram com a língua”, diz o talhante, com ar de desdém.
Muita gente vive em edifícios semidestruídos, ainda que muitos saibam que um dia terão de ser deitados abaixo e algum dia reconstruídos. Falam, com poucas esperanças, da reconstrução enquanto tentam juntar o máximo de mantimentos para o caso de o cerco ser reposto.
“Queremos viver”
As tréguas variam de bairro para bairro. Jornalistas levados no mês passado pelo regime a Babilla viram o que aparentava serem rebeldes armados e forças pró-Assad a cooperar nas ruas. Mas os activistas em Muadamyia, que viveu um dos mais difíceis cercos antes de ser acordada uma trégua, dizem que as forças de segurança estão a aumentar a pressão para que os rebeldes se rendam.
Em Yarmouk, casa de dezenas de milhares de refugiados palestinianos antes do início da rebelião, a trégua que permitiu o envio de comida e ajuda aos milhares que ali permanecem cercados foi rompido no início de Março depois do reinício de combates entre grupos jihadistas e o Exército. A Amnistia Internacional diz que 129 pessoas morreram em Yarmouk desde o início do cerco, em Julho.
Lakhdar Brahimi, o enviado especial das Nações Unidas para a Síria que ajudou a definir o acordo humanitário que permitiu o envio de ajuda e a retirada de centenas de pessoas da cidade velha de Homs, no centro da Síria, tem-se mantido em silêncio sobre estes acordos locais.
Depois de ter presidido a duas rondas de negociações de paz, na Suíça, nas quais não foram feitos progressos políticos, Brahimi está reticente em conferir legitimidade internacional a acordos que dão total controlo às forças de Assad sem quaisquer garantias para os civis, dizem vários diplomatas.
“Não está à espera que os deixemos fugir, ou está?”, perguntou um miliciano pró-Assad que participa no cerco a Qudsaya. “Sabemos exactamente quem eles são e pode ter a certeza que não os vamos deixar escapar depois de tudo o que fizeram. Temos ordens para apanhar um a um”, diz, sorrindo, enquanto faz com a mão o gesto de uma bofetada.
A trégua em Qudsaya colapsou depois de um oficial de um bairro vizinho dominado pela minoria alauita, comunidade xiita a que pertence a elite do regime, ter entrado numa zona rebelde com um filho, violando o acordo que impedia a entrada de qualquer militares. Foram ambos mortos. Em resposta, o regime fechou todas as estradas em direcção à zona e, ao invés de pedir que os assassinos lhe fossem entregues, exigiu 6 milhões de libras sírias (30 mil euros) em dinheiro. Os rebeldes aceitaram, pressionando os habitantes e os comerciantes a juntar o dinheiro.
“É assim que o regime está a destruir a nossa comunidade. Eles pressionam e pressionam até que nos viramos uns contra os outros. Acredita que os rebeldes estão a pedir aos comerciantes dinheiro para protegerem as lojas?”, lamentou-se um habitante. “Transformámo-nos num filme de cowboys.”
A frustração mistura-se com a resignação de quem, após uma longa e pesada luta para pôr fim a quatro décadas de poder da família Assad, quer apenas que o conflito acabe. Três anos depois das primeiras exigências de reforma terem despontado em Damasco e de os manifestantes terem gritado “Vai-te embora Assad”, um novo refrão surge quando as pessoas falam das tréguas: “Queremos viver”, dizem.
(A identidade do repórter não é revelada por razões de segurança)
Fonte: Público