O seu rosto poderá ser um daqueles, esquálidos quase todos, que despontam da devastação de Yarmouk e se acotovelam entre as ruínas de cada vez que a agência das Nações Unidas para os refugiados palestinianos (UNWRA) consegue levar comida ao campo. “Como tudo o que consigo apanhar. Faço, em média, uma refeição a cada 30 horas”, contou este sírio à Amnistia Internacional que, num relatório publicado a poucos dias do terceiro aniversário da revolta contra Bashar al-Assad, diz que pelo menos 194 pessoas morreram em Yarmouk desde o início do cerco, a grande maioria à fome.
Sobreviver tornou-se a única prioridade dos que ficaram encurralados quando, em Julho do ano passado, o regime começou a proibir a entrada de comida e medicamentos no bairro – há décadas que a zona, criada para receber os refugiados palestinianos da guerra de 1948, deixara de se assemelhar a um campo no sentido tradicional, confundindo-se com a malha urbana de Damasco. Os combates tinham começado no ano anterior, levando a maioria dos seus habitantes a fugir, mas para trás ficaram entre 17 a 20 mil pessoas, os mais frágeis e os mais pobres, diz a organização de direitos humanos no relatório Espremer a vida de Yarmouk: Crimes de guerra contra civis sitiados, divulgado nesta segunda-feira.
“Ou temos de ir aos campos que estão na mira dos snipers, à procura de ervas, ou nos juntamos para comprar um quilo de arroz ou lentilhas por 10 mil libras sírias [50 euros]”, contou a mesma testemunha, um dos seis residentes de Yarmouk ouvidos pela Amnistia, que mantém as suas identidades em segredo. As lentilhas foram a primeira alternativa para fazer pão quando o trigo começou a faltar, depois foi o bulgur e quando a escassez fez disparar os preços destes produtos as famílias viraram-se para as ervas, algumas comestíveis, outras venenosas. Apanhá-las significa muitas vezes expor-se aos disparos de snipers, refere a Amnistia, adiantando que pelo menos dez pessoas mortas por atiradores furtivos, duas das quais quando andavam nos terrenos adjacentes ao campo em busca de comida.
À falta de alternativas, conta outro residente, a “refeição” mais comum em Yarmouk passou a ser água misturada com especiarias. Mas há também quem vasculhe no lixo, quem mate cães e gatos para sobreviver, mesmo que isso signifique muitas vezes adoecer e arriscar a morte. Porque nos campos já quase não há médicos – naquele que já foi o maior hospital do campo restam dois clínicos e algumas enfermeiras – nem medicamentos.
Sem leite para os bebés
Segundo um médico ouvido pela organização, 60% da população sofre de malnutrição, uma situação com consequências mais graves entre os mais velhos, as crianças e as grávidas. “Pela primeira vez estou a ver crianças com a barriga inchada, só pele e ossos”, contou.
Das 194 nomes da lista reunida pela Amnistia, dois terços morreram à fome, 51 por causa de doenças ou ferimentos que seriam tratáveis num hospital equipados com serviços básicos. Doze eram bebés com menos de um ano, seis eram crianças. “Os bebés estão a morrer porque não há leite, nem fórmulas, nem nada para as mães comerem”, disse um funcionário do Crescente Vermelho Palestiniano, que contou que os hospitais tem resolvido alguns casos graças a mães capazes de amamentar mais do que uma criança de cada vez.
Sem comida nem acesso a cuidados médicos, muitas mulheres sofrem abortos e o relatório dá conta de três parturientes e cinco recém-nascidos que morreram devido a complicações durante o parto. Os hospitais têm sido também um alvo preferido da artilharia (um centro médico fechou portas depois de ter sido bombardeado 30 vezes), vários médicos foram mortos, outros fugiram. Dos 12 técnicos de saúde detidos nos últimos meses pelas forças governamentais, seis estão desaparecidos, um apareceu morto com sinais de tortura.
“Os civis em Yarmouk estão a morrer à fome, a ser forçados a ir em busca de qualquer coisa que possa servir de comida”, denuncia a Amnistia, recordando que “a lei humanitária – e as leis da guerra – proíbem o uso da fome como um método de guerra”.
A situação no campo, diz a organização, melhorou um pouco desde 18 de Janeiro, altura em que a UNWRA foi autorizada a retomar o envio de ajuda de emergência – até ao final de Fevereiro foram distribuídas quase oito mil parcelas de comida (cada uma alimenta uma família de cinco a oito pessoas durante dez dias) e 450 doentes graves foram levados para hospitais de Damasco. Uma ajuda que é escassa e, muitas vezes, demorada: uma rapariga baleada na cabeça demorou dez dias a receber autorização para ser tratada fora do campo.
“O léxico da desumanidade humana tem uma nova palavra – Yarmouk”, escreveu recentemente Christopher Gunness, porta-voz do gabinete de coordenação humanitária da ONU, num artigo para o jornal Guardian, sublinhando que o campo é hoje o resumo da “tragédia e do profundo sofrimento dos civis na guerra da Síria”.
Fonte: Público