Na Síria não são só as balas que matam. A destruição de hospitais, a falta de médicos, a escassez de medicamentos e as más condições sanitárias estão a ameaçar milhões de crianças, alerta a Save the Children, em mais um relatório publicado a dias do terceiro aniversário do início da revolta contra o Presidente Bashar al-Assad. A organização admite mesmo que “várias centenas de milhares” de crianças terão morrido por causa de doenças que poderiam ter sido prevenidas ou que seriam tratáveis não tivesse o sistema de saúde colapsado.
“As crianças dentro da Síria enfrentam condições bárbaras. Encontrar um médico é uma questão de sorte, encontrar um que tenha o equipamento necessário e medicamentos para fornecer o tratamento adequado é quase impossível”, denuncia Roger Hearn, director regional da ONG.
Mais do que dados novos, o relatório reúne estatísticas recolhidas por várias organizações internacionais, numa nova tentativa de despertar consciências para o desastre humanitário que se vive dentro das fronteiras sírias. Recorda que 60% dos hospitais e mais de um terço das clínicas foram destruídas ou danificadas pelos combates, que a produção de medicamentos (que chegou a cobrir quase todas as necessidades do país) caiu 70% e que quase metade dos médicos fugiram do país. Em Alepo, a maior cidade da Síria, restam 36 médicos quando, pelos padrões mínimos da Organização Mundial de Saúde (OMS), deveriam estar a trabalhar pelo menos 2500.
Os que ficaram têm de tratar muitos mais doentes – e muitos deles não têm os meios básicos ou sequer mais do que formação genérica. Tahsen, nome fictício de um médico de 26 anos que trabalha com outros quatro numa clínica improvisada numa cave, disse à Save the Children que já fez centenas de operações e trata todo o tipo de fracturas apesar de só ter saído da faculdade há um ano e não ter qualquer especialização.
As necessidades nunca foram tantas: a OMS calcula em mais de meio milhão as pessoas feridas nos combates, que não poupam ninguém. “Todos os dias temos crianças que sofreram queimaduras graves e fracturas. Precisam de operações complicadas, mas não temos condições para isso. Em alguns casos temos de os amputar para lhes salvar a vida – se não o fizermos eles esvaem-se em sangue”, contou outro médico.
“O desmoronar do sistema de saúde está a resultar em práticas médicas brutais que estão a provocar sofrimento a milhões de crianças”, alerta a ONG, dizendo ter testemunho de que, à falta de anestésicos para as cirurgias “há pacientes que optam por ficar inconscientes com [a pancada de] barras de metal”. As feridas são estancadas com farrapos, a falta de água impede a esterilização dos instrumentos cirúrgicos e “o simples uso de um penso não esterilizado pode provocar a morte”.
Poliomielite de regresso ao país
Para lá das 10 mil crianças que terão sido vítimas directas do conflito (dados do último relatório entregue ao Conselho de Segurança das Nações Unidas), a Save the Children calcula que “é provável que vários milhares de crianças tenham morrido devido a doenças crónicas, como asma, problemas renais ou epilepsia, que seriam tratáveis não estivesse o país a desfazer-se em guerra. Foi o caso de Omar, um rapaz de 11 anos a quem foi diagnosticado cancro e que o conflito impediu de receber tratamento. Novos tumores obrigaram a duas amputações e Omar acabou por morrer pouco depois de o pai o ter levado, em ombros, para fora do país, conta a ONG.
O colapso do sistema de saúde significa também que muitas crianças nascem em condições terríveis – faltam parteiras, ambulâncias para levar as mulheres aos hospital e há muitos bebés que morrem nas incubadoras por causa dos constantes apagões. Para não tentar o destino, 45% das grávidas optou por uma cesariana, preferindo os riscos da cirurgia a arriscar dar à luz a meio da noite ou no meio de combates.
A guerra travou também os programas de vacinação – que antes da guerra cobriam mais de 90% das crianças – o que está a resultar num aumento de casos de sarampo, meningite e, mesmo, os primeiros casos de poliomielite, dada como erradicada no país em 1995. Há 25 casos confirmados, mas o relatório cita uma investigação (posta em causa pela OMS) que admite a existência de 80 mil casos de infecção.
“A crise humanitária está a tornar-se uma crise de saúde”, alerta Roger Hearn, pedindo ao mundo que não feche os olhos “ao que a devastação do sistema de saúde da Síria significa para as crianças e as suas mães”.
Fonte: Público