Já existe uma geração perdida de meninos e meninas que nunca foram à escola devido ao conflito que se arrasta há três anos.
Na medida em que se aproxima o terceiro aniversário do início dos conflitos na Síria, há uma corrida contra o tempo para apresentar um projeto de educação inovador às vítimas mais atingidas pela guerra – centenas de milhares de crianças refugiadas. Um número chocante de três milhões de crianças sírias foram deslocadas. Mais de um milhão delas fugiram e estão definhando em acampamentos em países vizinhos, especialmente no Líbano, Jordânia e Turquia. Essas crianças estão sofrendo o terceiro inverno longe de suas casas, escolas e amigos. Muitos estão separados de suas famílias, e milhares juntam-se às multidões deslocadas todos os dias, no que está se tornando a maior catástrofe humanitária do nosso tempo.
Mas uma iniciativa inovadora no Líbano envolvendo professores, agências e fundações educativas abriu uma pequena janela de esperança. Em meio ao caos de acampamentos improvisados, cabanas e miséria, a luta por um importante novo princípio de ajuda internacional começou: mesmo em tempos de conflito, as crianças devem ter acesso à educação.
Há um século e meio, a Cruz Vermelha instituiu uma norma de que cuidados de saúde podem – e devem – ser oferecidos mesmo em zonas de conflito. Este princípio foi conduzido por grupos como o Médicos sem Fronteiras, cujos profissionais arriscaram suas vidas nas últimas quatro décadas para oferecer cuidados nos lugares mais perigosos do mundo. Agora o Líbano é local de um programa piloto para avançar na ideia de que proporcionar educação para crianças refugiadas é viável – e não menos importante. Em 1.500 comunidades nesse país conturbado, dividido, onde crianças sírias refugiadas compõem 20% da população em idade escolar, o objetivo é estabelecer o direito à educação como prioridade humanitária.
A típica criança refugiada passa mais de dez anos longe de casa. E a cada mês que a criança fica fora da escola fica mais difícil para ela voltar. Três anos atrás, a maioria dessas crianças estava na escola, e o país contava com educação básica quase universal. Atualmente, milhões delas têm negada qualquer oportunidade de perceber seus talentos. Essas cicatrizes vão durar por décadas.
Na Síria e na região ao redor do país, já existe uma geração perdida a caminho: meninos e meninas de oito e nove anos que nunca foram à escola, condenadas a trabalhar, e centenas de garotas forçadas a casamentos precoces. Há histórias horríveis de jovens que foram forçados a vender seus rins e outros órgãos simplesmente para sobreviver. Claro, nós devemos fornecer alimento, abrigo e vacinas. Mas, em conflitos como este, a única coisa de que as crianças precisam, além das necessidades básicas, é esperança. E é a educação que lhes dará esperança de que há luz no fim do túnel – esperança de que elas podem planejar o futuro e prepararem-se para o mercado de trabalho e a idade adulta.
O projeto-piloto no Líbano, desenhado por Kevin Watkins, do Instituto de Desenvolvimento Estrangeiro da Grã-Bretanha, e liderado pelo Fundo das Nações Unidas para as Crianças (Unicef) e pelo Alto Comissário das ONU para Refugiados (Acnur), cria a oportunidade de estabelecer o direito à educação independente de fronteiras. Com efeito, foi pensado para atender a todas as 435.000 crianças sírias refugiadas no país. Graças a um acordo histórico com o governo libanês, vagas para centenas de milhares de crianças poderão ser criadas em semanas ao implantar em 1.500 escolas um sistema de jornada dupla.
O esquema já está sendo testado em uma pequena aldeia chamada Akroum, no norte do país. As crianças libanesas têm aulas durante o primeiro turno e as sírias, durante o segundo. Aproveitando a mesma escola para os dois grupos de alunos, é possível oferecer educação a um custo de apenas £400 (670 dólares) por criança ao ano.
Para garantir lugares nas escolas para todas as crianças refugiadas, estamos arrecadando 195 milhões de dólares ao ano para a Unicef e a Acnur, com um plano a ser implementado no local por ONGs e autoridades libanesas. O objetivo é garantir que o montante seja arrecadado durante o mês de março, quando o mundo estará lembrando o terceiro aniversário deste trágico êxodo da Síria.
Já reunimos uma coligação de dez países doadores para tomar a frente, mas precisamos de mais dez doadores para financiar o projeto totalmente. Apelamos aos doadores não somente para que possamos oferecer milhares de vagas escolares para crianças desesperadamente necessitadas, mas também para estabelecer um precedente para outras 20 milhões de outras crianças arrastadas para violentos conflitos em campos de refugiados e favelas.
Não haverá oportunidade educacional para crianças de todo o mundo sem um pacto para atendê-las em zonas de conflito. Um milhão de menores afegãos vivem em campos de refugiados ao longo da fronteira com o Paquistão. Milhares de crianças no Sudão do Sul ainda esperam sua primeira chance de ir à escola. E escolas ainda precisam ser asseguradas a mais um milhão de crianças no cenário de guerra da República Centro-Africana. As chances dessas crianças dependem de demonstrarmos que somos capazes de conseguir progressos no Líbano.
Os objetivos do Milênio da ONU, adotados em 2000, expiram em dezembro de 2015, o que significa que o tempo está se esgotando para cumprir o prazo de atingir a meta de educação primária universal. Essa meta permanecerá inatingível, a menos e até que apliquemos o antigo princípio de que o direito da criança à educação não conhece fronteiras.
Gordon Brown, ex-primeiro-ministro e ministro das Finanças da Grã-Bretanha, é enviado especial da ONU para a educação global
© Project Syndicate, 2014
(Tradução: Roseli Honório)
Fonte: VEJA