Num pedaço do solo rochoso dessa imensa cidade formada por barracas e trailers pré-fabricados, o rei, usando jeans sujos e uma capa improvisada, ergueu o cetro de madeira e anunciou a intenção de dividir o reino. As filhas mais velhas, vestindo coroas de papel e joias de plástico, o cobriram de falsos elogios, enquanto a mais jovem disse verdadeiramente o que pensava e perdeu a herança.Assim começava uma adaptação recente de Rei Lear. Para as 100 crianças no elenco, aquele foi o primeiro contato com Shakespeare, embora já conhecessem a tragédia a fundo.
Todas elas eram refugiadas que tinham escapado da guerra civil na Síria. Algumas viram seus lares serem destruídos. Outras perderam parentes em meio à violência. Muitas ainda tinham problemas para dormir e se assustavam com barulhos altos. E agora seu lar é aqui, neste acampamento isolado e sem árvores, repleto de pobreza, incerteza e tédio. Refletindo a demografia mais ampla da crise de refugiados sírios, mais da metade dos 587 mil refugiados registrados na Jordânia tem menos de 18 anos, de acordo com as Nações Unidas. Cerca de 60 mil desses jovens moram no campo de Zaatari, onde menos de um quarto deles frequenta a escola com regularidade.
Pais e funcionários das agências de ajuda humanitária temem que a guerra na Síria crie uma geração perdida de crianças marcadas pela violência, que perderão anos cruciais do seu ensino, experiências e desvantagens devem persegui-las quando tiverem idade adulta. A apresentação de Rei Lear, conclusão de um projeto que durou meses, foi uma tentativa de reverter esse quadro.
“O espetáculo vai nos devolver o riso, a alegria e a humanidade”, disse o diretor, Nawar Bulbul, ator sírio de 40 anos conhecido em seu país por ter participado da produção de Bab al-Hara, drama histórico de imensa popularidade transmitido em todo o mundo árabe. A produção da peça ocorreu principalmente graças a Bulbul. Fumando cigarros enrolados à mão e falando com a expressão animada de um ator teatral que nunca para de interpretar, Bulbul descreveu a jornada que o levou de astro da televisão a diretor infantil.
Quando o levante na Síria teve início em 2011, ele aderiu contente à causa dos rebeldes, participando de protestos contra o governo, puxando gritos de guerra e atraindo a ira dos serviços de segurança. Uma peça produzida por ele foi proibida, e um ator colega dele que defendia o governo disse-lhe que poderia aparecer na TV para retificar sua posição ou ser detido. “Respondi que pensaria na proposta e, na semana seguinte, deixei o país”, disse Bulbul.
No ano passado, ele e a mulher, francesa, mudaram-se para a Jordânia, onde amigos o tinham convidado para distribuir ajuda humanitária em Zaatari. A visita o expôs ao que ele chama de “grande mentira” da política internacional que fracassara em impedir a guerra. “São pessoas que desejam voltar para casa, e são as vítimas enquanto grandes potências lutam sobre suas cabeças”, disse ele.
As crianças que ele conheceu no campo o fizeram prometer que voltaria, e foi o que ele fez – com o plano de mostrar ao mundo que os menos afortunados refugiados sírios eram capazes de produzir o mais elevado teatro. O sol ardia na data da apresentação, encenada no espaço de um retângulo pedregoso limitado por correntes e arame farpado. Os 12 atores principais estavam no meio do palco, enquanto o restante do elenco aguardava logo atrás, fazendo um coro responsável por comentários e efeitos sonoros. O público estava sentado no chão.
Quando cada uma das duas filhas mais velhas de Lear o enganaram com falsos elogios num árabe elegante e formal, o coro gritava, “Mentirosa! Hipócrita!” até as irmãs ordenarem que se calasse.E quando a terceira irmã se recusou a fazer o mesmo, o coro gritou “Sincera! Justa!” até ser calado pelo rei.
Em cenas posteriores, o rei foi atormentado pelo bobo da corte, que usava uma peruca de arco-íris, e oito meninos apresentaram uma luta de espadas coreografada usando pedaços de tubulação plástica. Algumas cenas de Hamlet foram incluídas, tornando a história difícil de acompanhar. Em certo momento, um caminhão-pipa passou perto do palco, abafando a fala dos atores com o barulho do motor e cobrindo o público com uma nuvem de poeira.
Mas o simples fato de a peça ter sido encenada foi o bastante para as centenas de espectadores. Famílias que moravam nas barracas mais próximas trouxeram os filhos, colocando-os sobre os ombros para que pudessem ver melhor. Após a decadência de Lear rumo à demência e à morte, o elenco cercou o público, entoando um triunfal “Ser ou não ser!” em inglês e árabe. A público irrompeu em aplausos, e algumas das atrizes principais foram às lágrimas. Bulbul disse que a reação do público foi demais para elas, que nunca tinham sido aplaudidas antes.
Após o espetáculo, enquanto jornalistas entrevistavam o elenco, os pais comentavam orgulhosos o talento dos filhos.“Sou a mãe do Rei Lear”, declarou Intisar al-Baradan ao ser indagada se tinha visto a peça. Ela disse ter trazido cerca de 20 parentes para ver a apresentação, acrescentando que o filho era também um excelente cantor.
Outros pais descreveram o projeto como um raro momento de luz na sombria vida no campo. Hatem Azzam, cuja filha, Rowan, 12 anos, interpretava uma das filhas de Lear, disse que a família deixou Damasco depois que forças do governo incendiaram a carpintaria dele.“Morávamos num bairro rebelde e, por isso, eles queimaram todas as lojas da rua”, disse Azzam.Ele chegou a Zaatari há um ano com outros cinco parentes, mas um dos irmãos adoeceu e morreu pouco depois, e a mãe, de idade avançada, jamais se adaptou ao clima do deserto, morrendo também.
Ele hesitou antes de mandar os filhos para a escola, temendo que ficassem doentes nas salas de aula superlotadas, e impediu que ficassem vagando pelo campo para não aprenderem maus hábitos. Mas o projeto teatral era perto de casa, e a filha ficou tão animada com aquilo que ele permitiu que ela participasse. “Recebemos oportunidades na vida, e temos que nos aproveitar delas”, disse Azzam. “Ela teve a oportunidade de atuar quando jovem, e isso pode tornar tudo mais fácil para ela no futuro.” A mãe de Bushra al-Homeyid, 13 anos, que interpretou outra das filhas de Lear, disse que a família deixou a Síria depois que um bombardeio do governo matou a sobrinha e o sobrinho dela.
“A vida no campo é incompleta, temporária”, disse ela. “Esperamos nossa estadia aqui seja breve.” Mas, passado um ano, ela começou a temer que a filha mais velha, no ensino médio, não estivesse pronta para a faculdade.Com um enorme sorriso e a coroa amarela de papel, a filha mais nova, Bushra, disse que nunca tinha atuado antes, mas gostaria de continuar. “Gosto da ideia de mudar minha personalidade e ser outra pessoa”, disse ela.
TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
Fonte: Estadão