Eu conheci tantas crianças mais velhas do que sua idade, refugiados privados de um futuro. Algo a respeito do menino não estava certo.
Ele parecia desorientado, separado de seus arredores. Ele mal falava, e quando o fazia, era de modo monossilábico, seus olhos sem foco e abatidos, como se fossem pesados demais para erguer do peso de tudo o que já viram. Ele era o quadro da devastação silenciosa, de uma infância para sempre estilhaçada.
Ele tinha 14 anos, um refugiado sírio, sentado com sua família em uma sala pequena no prédio de registro do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados em Erbil, no norte do Iraque. Nos escritórios lotados e barulhentos no andar de baixo, inúmeros refugiados recém-chegados faziam fila para se registrarem, incluindo uma família coberta de pó, de aparência exausta, de ciganos e uma mulher síria com pé torto, que mancava pelos corredores e implorava a todos os que passavam que lhe dessem asilo na Alemanha.
No escritório no andar de cima, o pai do menino estava sentado à mesa diante de mim. Um homem de 36 anos com aparência de garoto, ele contou, com calma admirável, a história da fuga angustiante de sua família, duas semanas antes, da cidade natal deles de Aleppo, e a viagem subsequente deles para atravessar a fronteira turca e chegar à região do Curdistão do Iraque.
Antes da guerra, ele disse, ele trabalhava em uma loja de calçados e seus três filhos demonstravam excelência na escola. Era uma vida de classe média modesta, mas feliz. Mas então veio a guerra e, de repente, granadas propelidas por foguete eram disparadas o dia todo e Aleppo ficou cheia de crateras das bombas que não cessavam de cair. Ele perdeu seu emprego e a escola de seus filhos fechou; eles perderiam dois anos letivos inteiros até a fuga da família.
Logo, não havia eletricidade, serviço telefônico e nem comida. O pai vendeu os pertences da família, até a última peça da mobília. Quando o dinheiro acabou, ele passou a pedir farinha emprestada aos vizinhos para sua esposa fazer pão.
“Às vezes nós ficávamos sem comer por dois ou três dias, apenas dando pão e água para as crianças comerem para sobreviver”, ele disse.
Mesmo assim, ele se sentia comparativamente afortunado, já que as explosões não atingiam o prédio onde eles viviam. Mas a sorte da família acabou quando uma bomba atingiu o prédio deles de cinco andares. O andar superior foi demolido. Ele descreveu uma cena de carnificina. Quatro pessoas morreram, um idoso e três crianças, e muitas mais ficaram feridas. Aquela foi a noite em que a família decidiu fugir e vir para Erbil, para ficar com o irmão dele, que trabalhava em um hotel.
Eu me vi torcendo para que ele não me dissesse isso, mas disse: “Nossos filhos viram de tudo. Pessoas rasgadas em 100 pedaços. A carne humana despedaçada diante de nós –carne e sangue”. E olhei furtivamente para o menino dele e vi seu rosto envolto em escuridão.
Eu sou pai de dois filhos. Eu não consigo imaginar o que isso faria a eles, ver coisas tão terríveis. Mas isso está acontecendo todo dia na Síria. Toda uma geração de crianças é incapaz de frequentar a escola, suas vidas são moldadas pela violência, pesar e deslocamento.
Em algum momento neste ano, a Síria ultrapassará meu país de origem, o Afeganistão, como Estado maior produtor de refugiados do mundo. Atualmente são 2,5 milhões de refugiados da Síria, 1,2 milhão deles crianças.
Dois terços das crianças refugiadas sírias, e quase três milhões de crianças dentro do país, estão fora da escola. Elas enfrentam um futuro quebrado. A Síria está à beira de perder uma geração. Essa talvez seja a consequência mais catastrófica dessa guerra terrível.
O mesmo me foi dito por Payman, uma menina de 16 anos vivendo com seus pais e três irmãos mais novos no campo de Kawergosk, perto de Erbil. Kawergosk foi construído quase da noite para o dia em agosto, quando um afluxo repentino de dezenas de milhares de sírios entrou no norte do Iraque. Hoje, ele é lar de 12 mil pessoas, uma cidade de tendas brancas espalhadas na base de uma colina verde, cortada por ziguezagues de ruas lamacentas ao longo das quais os homens fumam e falam de guerra, os meninos jogam bola e as mulheres se inclinam sobre a fumaça das fogueiras para cozinhar.
Payman vestia uma camiseta azul listrada com um desenho de borboleta na frente, mas como muitas crianças sírias que conheci, seu comportamento tinha uma maturidade além de seus anos. Na tenda da família, Payman me mostrou velhas fotos e vídeos caseiros de uma antiga festa de aniversário. Eles já assistiram esses vídeos inúmeras vezes, ela disse, mesmo assim, toda noite, eles se reuniam para assisti-los de novo, petrificados por aquelas imagens granuladas de versões mais livres, mais felizes, deles mesmos.
Ela manteve a compostura até que proferi a palavra “educação”. Seus olhos se encheram de lágrimas enquanto ele me contava que suas esperanças de concluir a escola e se tornar uma escritora agora pareciam um sonho esfarrapado. “Sem escola não há futuro”, ela disse. “Não há felicidade.”
Na Síria, a guerra não mostra sinal de terminar. Muito mais famílias como a de Payman serão forçadas a abandonar seus lares e fugir pelas fronteiras. Os países vizinhos –Iraque, Líbano, Jordânia, Egito, Turquia– estão generosamente fazendo o que podem, a um grande custo para suas economias, serviços sociais e infraestrutura. No Líbano, por exemplo, os refugiados sírios correspondem a quase um quarto de sua população.
T.S. Elliot já escreveu que a humanidade não consegue suportar muita realidade. Mas essa é uma realidade que todos nós devemos encarar, uma que não podemos deixar desaparecer na bruma da apatia. Os países vizinhos da
T.S. Elliot já escreveu que a humanidade não consegue suportar muita realidade. Mas essa é uma realidade que todos nós devemos encarar, uma que não podemos deixar desaparecer na bruma da apatia. Os países vizinhos da
Síria não podem e nem deveriam arcar sozinhos com o custo de cuidar dos refugiados. A comunidade internacional deve compartilhar o fardo com eles, fornecendo ajuda econômica, investindo em desenvolvimento nesses países e abrindo suas fronteiras para famílias sírias desesperadas à procura de proteção. E cidadãos comuns podem ajudar a financiar a educação de milhões de crianças sírias como Payman, para assegurar que o futuro delas não seja arruinado.
Quando deixamos o prédio de registro, eu vi o pai com o qual tinha me encontrado antes, e sua família, aguardando em um escritório lotado para se registrarem. O filho dele estava sentado em uma cadeira de madeira, imóvel, de braços cruzados, com os olhos vazios olhando para frente.
Por um momento, ele olhou na minha direção. Eu vislumbrei o apuro de toda uma geração de crianças sírias, pegas entre a dor do que aconteceu e a incerteza do que está por vir. O menino piscou e desviou o olhar. Eu não vi nenhum reconhecimento em seus olhos.
(Khaled Hosseini, um embaixador da boa vontade do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, é autor dos romances “O Caçador de Pipas” e, mais recentemente, “O Silêncio das Montanhas”.)
(Khaled Hosseini, um embaixador da boa vontade do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, é autor dos romances “O Caçador de Pipas” e, mais recentemente, “O Silêncio das Montanhas”.)
Tradutor: George El Khouri Andolfato
Fonte: A Agonia de Prometeu