Elas foram presas, espancadas e estupradas quando a irracionalidade e a violência assolaram Ruanda há 20 anos. Hoje, essas mães – que escaparam do genocídio que matou quase um milhão de pessoas – e os frutos da barbárie buscam viver uma vida normal em meio a tantas memórias. No entanto, embora tenham sido concebidos a partir de crimes sexuais, esses meninos e meninas não são considerados sobreviventes e, com isso, não recebem apoio do governo.
A reportagem é de Fabiola Ortiz, publicada por Opera Mundi, 09-04-2014.
Apesar de as estatísticas serem imprecisas, as Nações Unidas estimam que entre 250 mil e 500 mil mulheres foram estupradas por milícias e grupos de hutus armados. Dessas violações, teriam nascido 200 mil crianças.
Os “filhos do genocídio” não viveram a carnificina que teve início no dia 7 de abril de 1994 e durou até julho do mesmo ano, quando a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) comandada por Paul Kagame expulsou extremistas genocidas e o governo provisório após o acidente de avião que matou Juvenal Habyarimana – fato que desencadeou o massacre que durou cem dias. Porém, cresceram com as marcas vivas de um passado que não testemunharam, mas que conhecem muito bem pelos relatos e cicatrizes deixadas em suas mães.
“Eu perdoaria o homem que me estuprou, mas infelizmente não sei quem é. Foi mais de um. Se soubesse quem são e se essas pessoas viessem até mim e confessassem, eu perdoaria”, disse a Opera Mundi Naomie Mukakalisa, de 37 anos. Ela vive em Nyamata, no distrito de Bugesera, a 40 minutos de Kigali, e é produtora rural. Em seu pequeno lote, cultiva alimentos para subsistência própria e de seus dois filhos e, quando sobra, tenta vender no mercado local. Para ela, perdoar é uma forma de amenizar a dor que carrega até hoje.
Durante o genocídio, Mukakalisa era casada e tinha um bebê de um ano. O marido morreu após ser violentamente espancado. Ela também perdeu os irmãos. Após o estupro, Mukakalisa deu à luz Patrick, hoje com 19 anos, aluno do ensino médio. Em entrevista a Opera Mundi, ele conta que adora química e, por isso, quer se tornar médico.
“Muitas pessoas no meu vilarejo, quando vão aos postos de saúde, esperam por muito tempo e não recebem um bom tratamento. Quero ser um médico para ajudar a minha comunidade, tratar das pessoas doentes e fazer a vida delas mais fácil e melhor. Há poucos médicos para ajudar a comunidade”, lamentou.
A mãe, tímida, deixa claro o orgulho que sente de Patrick. Ela, que nunca estudou, diz que se tivesse alguma oportunidade, gostaria de aprender artesanato para complementar a renda.
“Meu filho, estude bastante para você ter um futuro e ir para a universidade, para cuidar de mim quando eu envelhecer e cuidar das pessoas doentes e necessitadas. Estou feliz que você está se comprometendo a estudar e a trabalhar e tem interesse em cursar medicina na universidade. Ficarei orgulhosa de ser mãe de um médico na minha comunidade”, disse em kinyarwanda, com um leve sorriso no rosto.
Mukakalisa é uma das centenas de mulheres atendidas pela Kanyarwanda, uma associação local que recebe apoio da Fundação Ruanda. Ela conta que sua vida mudou após o filho entrar na escola. Por não ser considerado um sobrevivente do genocídio, Patrick nunca recebeu apoio do governo. No país, até as escolas públicas cobram uma taxa anual.
Ela conta a rotina na associação. “A cada três meses, eu também me encontro com outras mulheres que passaram pela mesma experiência e sinto que não estou tão só. Não me sinto a única por ter vivido coisas ruins”, disse.
Mães soropositivas
Outro grave problema é a contaminação pelo vírus HIV. “Um terço das mulheres que atendemos são soropositivas. Durante o genocídio, as armas eram o estupro e a infecção”, conta a Opera Mundi Samuel Munderere, coordenador local da ONG, cuja sede fica nos EUA. Atualmente, além de Mukakalisa, a Fundação Ruanda apoia 735 filhos e 684 mães. Muitos já estão prestes a concluir o ensino médio e seis já conseguiram ingressar em universidades.
Munderere explica que, além de assegurar que os filhos do genocídio tenham direito à educação, é importante prestar assistência psicossocial às mulheres. “Temos que ajudá-las a superar essas experiências que tiveram para que possam criar seus filhos. Algumas das mães associam o nascimento da criança à violência e, por isso, tem dificuldades de relacionamento. Tentamos mostrar às mães que essas crianças são como quaisquer outras, são vítimas do que aconteceu e não devem sofrer”, explicou.
O coordenador admite que lidar com este tema é muito delicado, mesmo passadas duas décadas após uma das maiores atrocidades do século 21. A ONG já recebeu pedidos de mães para acolher 1.500 crianças. O número é grande, porém a capacidade é limitada, lamenta. “Poderíamos fazer mais caso pudéssemos arrecadar mais recursos. É difícil conseguir financiamento para os projetos, muitos pensam que após 20 anos os problemas já acabaram”, desabafou.
Em 2014, a Fundação Ruanda acabou de utilizar sua última parcela de recursos que restava. “Se não conseguirmos mais, nossa operação para 2015 terá que ser paralisada. Seria muito ruim para as mulheres e as crianças, que teriam que deixar as escolas onde estudam”, afirmou.
“Nunca vou esquecer”
É difícil esquecer o que aconteceu, confessa Josiline Kayitesi, de 49 anos, também de Bugesera. Ela conta que há coisas que não é possível apagar da memória. “Uma delas é a forma como queimaram a casa da minha família e como as nossas vacas foram mortas. Também não vou nunca esquecer de quando fui violentada, isso é algo que irei me lembrar para sempre”.
Ao contrário de muitas mulheres, Kayitesi conseguiu cursar o primário, mas não pôde concluir o ensino médio. A produtora rural teve Sonia, também de 19 anos. A menina soube a verdade sobre sua concepção aos 14 anos. “Decidi falar com ela primeiro antes que soubesse por outras pessoas. Fomos para o quarto e falei que, durante o genocídio, muitas coisas ruins aconteceram. As mulheres eram violentadas e, como resultado, fiquei grávida [dela]”, relatou.
Desde então, a vida de Sonia mudou, diz Kayitesi. Até o relacionamento com os primos em casa foi afetado. “Sonia sempre achou que era da mesma família. Depois ficou mais tímida e reservada”, lamentou a mãe.
A garota afirma que ainda não sabe qual profissão quer ter, mas reconhece que tem “uma grande responsabilidade de estudar, ajudar a cuidar da minha mãe e contribuir para reconstruir a nação”. Ela diz que conhece jovens com o passado parecido com o dela e admite que, apesar de difícil, todos pensam da mesma forma. “Vamos trabalhar muito para ter a vida melhor”.
Na opinião de Munderere, as mulheres desempenham um papel essencial para a reconciliação e desenvolvimento de Ruanda. “Elas são as mães dessa nação. As mulheres são boas em gerir e dividir recursos, muito mais do que o homem. Quando uma mulher tem renda, ela usa para compartilhar com a criança e com a família. As mulheres são fundamentais no caminho do desenvolvimento”, ressaltou.
Fonte: UNISINOS