O trauma das violações do genocídio ruandês continua vivo

segunda-feira, abril 14, 2014

Claudine Umuhoza, sobrevivente do genocídio ruandês, acredita que seu país tem um futuro positivo de unidade. Foto: Fabíola Ortiz/IPS

Claudine Umuhoza, sobrevivente do genocídio ruandês, acredita que seu país tem um futuro positivo de unidade. Foto: Fabíola Ortiz/IPS

O filho de Claudine Umuhoza completou 19 anos no dia 1º deste mês. Ele é uma das milhares e milhares de crianças concebidas enquanto em Ruanda era cometido um genocídio, mas não é reconhecido oficialmente como um sobrevivente. Sua mãe é.Duas décadas depois do massacre de um milhão de membros da etnia minoritária tutsi e de hutus moderados, a maior parte da população atual ainda faz malabarismos para suportar o peso daquela violência.

As mais afetadas são as mulheres que pariram filhos concebidos em violações em massa. Estima-se que nesses cem dias, entre 6 de abril e meados de julho de 1994, entre cem mil e 250 mil mulheres foram violadas. Umuhoza, que vive no distrito de Gasabo, perto da capital, tinha 23 anos em 6 de abril de 1994, quando foi derrubado o avião em que viajavam o então presidente Juvenal Habyarimana e seu colega de Burundi, Cyprien Ntaryamira.

No conflito armado que se seguiu ela foi violada por sete homens. Um deles a esfaqueou no ventre com um facão e a deixou morrendo jogada no chão. Mas Umuhoza sobreviveu porque um vizinho hutu lhe deu assistência e a ajudou a fugir entregando-lhe um documento de identidade falso no qual constava que ela era hutu. “Esse vizinho já não vive em Ruanda, mudou com a família para Moçambique. Quero lhe agradecer por salvar minha vida. Se não fosse ele, eu estaria morta”, contou à IPS.

No massacre essa mulher perdeu quatro irmãos e outros membros de sua família. Agora, aos 43 anos, vive com o vírus HIV, causador da aids, e ainda não contou ao seu filho porque nasceu. “Não sou capaz. Ele não sabe. Me casei em setembro de 1994, depois do genocídio”, disse. “Já estava grávida, e depois de dar à luz meu marido entendeu que o filho não era seu. Não o aceitou e foi embora”, contou Umuhoza, que nunca voltou a se casar.

A violação sexual continua sendo um forte tabu na sociedade ruandesa. Segundo Jules Shell, diretor-executivo da Fundação Ruanda, embora esse país da África central tenha feito grandes progressos, as mulheres que contraíram HIV ao serem violadas ainda sofrem uma intensa estigmatização. Essa organização, com sede nos Estados Unidos, foi criada em 2008 e no ano seguinte começou a apoiar a escolaridade de um primeiro grupo de 150 crianças nascidas de violações.

“Uma quantidade desproporcional de mulheres violadas também contraíram HIV”, detalhou Shell à IPS. Embora não existam dados exatos, estima-se que 25% da população feminina vive com o vírus. “Nunca saberemos o número preciso de crianças nascidas de violações cometidas durante o genocídio, pois muitas mulheres têm medo, não podem ou não querem reconhecer a circunstância em que seus filhos foram concebidos”, afirmou.

Mas as consequências daquele pesadelo afetam os jovens que nasceram depois de terminado. “Muitos experimentam um fenômeno comum entre filhos de sobreviventes de um holocausto, conhecido como transmissão do trauma intergeração”, explicou Shell. “É resultado da impossibilidade das mães de falarem abertamente aos filhos sobre suas experiências e seu próprio trauma, o que acaba afetando-os”, acrescentou.

Como Umuhoza, muitas mulheres guardam silêncio, mas seus filhos sabem que têm pais que são desconhecidos para suas mães. Isso também cria problemas práticos, por exemplo, quando os filhos vão se registrar para tirar o documento de identidade e precisam dar nome e sobrenome dos pais. Graças à Fundação Ruanda, o filho de Umuhoza está para se formar na escola secundária, algo que sua mãe não pôde fazer.

Ela é uma das 600 mães que recebem apoio dessa organização, que também fornece material escolar e paga as matrículas. “Estou muito feliz por ele estar no secundário. Rezava para isso acontecer, e tenho a esperança de que poderá ir à universidade. É muito importante pra mim. Sei que é caro, mas se nem mesmo imaginávamos que iria à escola secundária… As portas podem se abrir rapidamente, tenho esperança”, opinou.

Umuhoza sonha em ver seu filho advogado e dedicado a defender pobres e marginalizados. Mas ele tem seus próprios sonhos e quer ser médico. “Ele me vê sofrendo dores e indo ao médico, por isso sonha ser capaz de me curar”, contou. Devido ao seu estado de saúde e às sequelas deixadas pelo ferimento no ventre, Umuhoza só pode fazer trabalhos muito leves. Por ser sobrevivente, tem direito a assistência médica paga por um fundo especial criado pelo governo e que conta com 2% do orçamento do Estado. No dia 15 deste mês, ela fará uma cirurgia no hospital militar de Kigali.

O estigma e a discriminação dos tutsis não desapareceram, sobretudo nas zonas rurais, onde são muito minoritários. Segundo a Comissão de Unidade Nacional e Reconciliação, criada em 1999, pelo menos 40% dos ruandeses ainda temem outro genocídio. “A desconfiança está aí. O trauma ainda é um problema. Temos prisioneiros que foram libertados há pouco, mas não se integraram à sociedade”, explicou à IPS o diretor de manejo de conflitos e construção da paz da Comissão, Richard Kananga.

A reconciliação é um processo contínuo. “Não podemos dizer quanto demorará. Temos pesquisadores que medem como a população percebe esse processo de segurança humana. Não podemos dizer que em mais 20 anos teremos conseguido que 100% da população se sinta segura”, acrescentou Kananga. As crianças que nasceram depois do genocídio podem representar uma etapa nefasta da história do país, mas também são “a luz e a esperança de um futuro mais luminoso”, afirmou Shell.

Umuhoza também acredita nisso. “Compare como era o país há 20 anos e como é agora. O futuro de Ruanda será melhor, o povo estará unido. Isso não significa que as pessoas terão esquecido que são tutsi ou hutu. Os ruandeses continuarão sabendo quem são”, afirmou. Envolverde/IPS

Fonte: IPS Notícias


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