Voltando de Carnot, na República Centro Africana: Foram imagens extremamente difíceis de se ver

sexta-feira, abril 4, 2014

Coordenador de projeto volta da cidade e conta, em detalhes, situações de angústia vivenciadas pelas equipes de MSF

© Remi Djian/MSF

© Remi Djian/MSF

Entre janeiro e março, Dramane Kone foi coordenador de projeto da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Carnot, no oeste da República Centro-Africana (RCA). MSF atua no hospital da cidade desde 2010. Nesta entrevista, Dramane discute o fluxo de grupos armados operando na RCA que passam por Carnot, a violência que os acompanha e a mudança de cenário na cidade, que havia, inicialmente, sido poupada da barbárie que acometia outras partes do país.

“Há um ano, em março de 2013, quando os ex-Seleka chegaram a Carnot, não houve violência significativa ou impacto direto na população e em nossos projetos. Posteriormente, em dezembro de 2013, a situação piorou e as equipes de MSF passaram a atender vítimas de tiros. A maioria vinha de Baoro, cidade localizada no norte da subprefeitura de Carnot. Ao mesmo tempo, logo que a população muçulmana começou a deixar a cidade, os habitantes de Baoro começaram a chegar.
 
O contexto mudou drasticamente durante o tempo que fiquei no projeto. Em 20 de janeiro de 2014, os ex-Seleka deixaram Baoro, onde tinham protegido a população muçulmana, e partiram rumo a Carnot. Foi nesse momento que tiveram início os roubos, saques e execuções públicas sumárias. Isso teve impacto imediato na população e uma espécie de psicose se instalou. Tanto cristãos como muçulmanos deixaram suas casas para se reunirem em outros locais, como o hospital da cidade onde MSF atua, buscando proteção. A área é considerada neutra. Alguns dos profissionais locais de MSF tiveram de esconder suas famílias em minas de diamantes abandonadas. Desde então, não houve mais calma em Carnot.
 
Depois que os ex-Seleka deixaram Baoro, os anti-Balaka extorquiram e assediaram as populações muçulmanas, que não mais tinham proteção, por uma semana inteira. Os ataques de 22 e 23 de janeiro foram consequência da incapacidade dos habitantes de atender às demandas dos anti-Balaka. Muitas pessoas morreram. A população fugiu e uma nova onda de pessoas deslocadas chegou a Carnot. Em 30 de janeiro, fui a Baoro avaliar a situação após os ataques. Casas foram incendiadas e os corpos carbonizados estavam espalhados pelo chão. Foram imagens extremamente difíceis de se ver. Tudo havia sido pilhado e destruído. Ainda ouviam-se tiroteios na cidade. Fomos à igreja, onde 5 mil pessoas estavam abrigadas. Havia feridos entre elas, mas era impossível transportá-los a Bouar, onde MSF administra um programa cirúrgico, porque os anti-Balaka haviam instalado bloqueios pela estrada e não os deixariam passar. Nós, então, os levamos a Carnot – principalmente mulheres e crianças. Muitos seguiram para a estação de trem de Carnot, na esperança de encontrar meios de transporte que os levassem para fora do país, para o Chade.
 
Na noite de 30 de janeiro, os ex-Seleka voltaram do sul e estavam a caminho de Berberati quando passaram por Carnot. Eles saquearam e roubaram pelo caminho. O principal interesse era veículos que eles pudessem usar em sua retirada. Eles chegaram a Carnot de madrugada e roubaram tudo na área de nossa base por volta das 19 horas. Às duas da manhã, eles estavam em nossa casa. Estávamos com medo, mas mantivemos a calma. No final das contas, foi nosso comportamento que nos salvou? Ou foi o fato de, dois dias antes, termos tratado e salvo um dos feridos do grupo, e o levamos ao nosso projeto cirúrgico em Paoua? Ou ainda, as visitas diárias para lembrá-los quem somos, o que fazemos e qual o nosso mandato? No final das contas, eles abandonaram o plano que tinham de levar um dos carros de MSF. Eles nos disseram: ‘MSF, nós sabemos que vocês tratam todos da mesma forma, muçulmanos e cristãos. Vocês nos perdoam?”. E foram embora com dinheiro, obviamente, mas foi só. Nós pudemos reduzir o prejuízo. Na manhã de 31 de janeiro, todos os ex-Seleka se reuniram a cerca de cinco quilômetros da cidade e, então, foram embora. As pessoas que até então estavam escondidas em suas casas começaram a sair. Pensamos que a calma havia sido restituída. 
 
Mas, no dia seguinte, 1 de fevereiro, novos e muito violentos grupos anti-Balaka de Baoro e de Bozoum apareceram. Nos dias 2, 3 e 4 de fevereiro, eles começaram a executar pessoas, matar, fazer reféns. Eles começaram a ameaçar muçulmanos que estavam refugiados na igreja. No dia 6 de fevereiro, 30 tropas da Missão Internacional de Suporte à República Centro-Africana (MISCA, na sigla em inglês) chegaram à igreja, o que não impediu os anti-Balaka de atirar contra cerca de 100 refugiados muçulmanos no pátio de uma casa. Isso foi no dia 7 de fevereiro. Fomos até lá e eu contei cerca de dez corpos. Mais de 86 pessoas foram feitas prisioneiras – a maioria mulheres e crianças. Elas estavam sentadas com lágrimas nos olhos, mas não fomos autorizados a tirá-las dali. Era muito perigoso para elas e para nós também. Havia diversas pessoas doentes e feridas. Os anti-Balaka nos deixaram levá-las conosco. Algumas pessoas ainda estavam vivas entre os corpos, mas não fomos autorizados a levá-las. ‘Se continuarem insistindo, vamos espancá-los na frente de vocês!’ Do lado de fora, uma criança estava com um ferimento resultante de uma facada. O menino estava entre as 14 pessoas que pudemos evacuar. No caminho, fomos cercados por homens armados diversas vezes. Nossos pacientes foram ameaçados – ‘São nossos prisioneiros. Vocês têm de levá-los de volta’. Finalmente, entramos em contato com as tropas MISCA, que conseguiram resgatar os 86 prisioneiros e levá-los à igreja, onde os muçulmanos da cidade estavam reunidos. Os católicos que abrigaram ou esconderam muçulmanos em suas casas e foram acusados de serem cúmplices pelos anti-Balaka fugiram também, com medo de represálias.
 
No dia 8 de fevereiro, após confrontos entre os anti-Balaka e as tropas MISCA, 12 pessoas feridas foram tratadas no hospital. No dia 12 de fevereiro, os anti-Balaka atacaram as tropas MISCA novamente. Um dos soldados ficou gravemente ferido. Tivemos de evacuar quatro muçulmanos feridos de avião para nosso programa em Paoua. O avião pousou e esperava por nós. No momento em que nossa ambulância foi em direção à pista de pouso, cerca de 50 homens, muito descompensados e nervosos, nos bloquearam próximo da igreja. Tivemos de começar uma negociação lenta, lembrando-os que, dois dias antes, tínhamos tratado e evacuado dois de seus feridos. Mais uma vez, o fato de tratarmos todas as pessoas igualmente salvou o dia e pudemos seguir em frente. Um de nossos médicos ficou para trás para tratar o soldado da MISCA. Cinquenta minutos depois, o avião retornou para buscá-lo. O paciente tinha uma perna fraturada e a artéria femoral havia sido afetada. Ele estava próximo de morrer, mas sobreviveu. Nós sentimos muito medo naquele dia, e todos ficamos abalados. A equipe toda se deu conta de que o contexto em Carnot havia mudado dramaticamente.
 
Entre 21 de janeiro e 8 de fevereiro, tratamos 70 pessoas feridas. No dia 1 de março, após novos confrontos, a equipe de cirurgia móvel veio de Bangui para tratar os novos pacientes feridos no local e encaminhar outros para a capital. No dia 11 de março, cerca de 200 muçulmanos deslocados que estavam na igreja conseguiram ir para Camarões, mas 900 pessoas ainda estão encurraladas. Elas podem ser linchadas se saírem da igreja. Nós começamos operações de emergência no local. Em fevereiro, nossas equipes realizaram 950 consultas médicas na igreja. Nós continuamos indo para lá duas vezes por semana, realizando 65 consultas por vez, principalmente relacionadas à malária, na medida em que a estação de pico da doença se aproxima. Estamos desenvolvendo também um trabalho logístico para melhorar as condições de vida e sanitárias. Além disso, estamos provendo água e distribuindo itens de primeira necessidade, como cobertores, sabonete e colchões. Estruturamos estratégias para tratar e administrar o influxo de pacientes feridos no hospital. Todos os muçulmanos de Baoro fugiram e o restante da população está escondida na mata. MSF está considerando organizar clínicas móveis para as pessoas que estão sem acesso a cuidados de saúde.
 
Eu não sei o que vai acontecer em Carnot. As tropas francesas vão sair dali. A proposta é fortalecer a MISCA, mas a situação pode se deteriorar de novo a qualquer momento.”
Fonte: MSF

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