À procura das crianças feiticeiras

domingo, maio 25, 2014

DENI BÉCHARD (em Kinshasa)

Os pais acusam-nas de ser responsáveis por estarem desempregados, da doença de um familiar, da morte de um irmão. Milhares de crianças congolesas são todos os anos exorcizadas por se acreditar que têm o demónio dentro. A cerimónia resulta de uma mistura de magia negra com o cristianismo que os portugueses levaram para o país.

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Dentro de uma pequena igreja de betão, iluminada por focos pendurados em cabos eléctricos à vista, centenas de pessoas apinham-se no calor, repetindo as palavras que o seu pastor debita no microfone. “Vamos matar os demónios.”

Já passa da meia-noite em Kinshasa, a capital da República Democrática do Congo, mas a celebração estava só a começar. O pastor, Pierre Pinda Buana, usa uma camisa azul simples, que reluz enquanto se movimenta pela sala de forma suave, com prática, confiante. Durante quase uma hora, Pinda lidera a sua congregação, com canções e cantos, fazendo aumentar o fervor dentro da igreja. Depois, começa a pregar sobre o principal acontecimento que os levou ali: exorcismo.

Charles, um amigo meu congolês que me pediu que não usasse o seu verdadeiro nome, traduz as palavras de Pinda do lingala, uma língua local, para o francês. Mas os gritos, as palmas, as ululações da multidão sobrepõem-se frequentemente à sua voz. Pinda começa a descrever um demónio que vivia no corpo de uma mulher que está à frente dele, quase totalmente tapada do meu campo de visão pela multidão. “Está a atacar o coração. Está a atacar o estômago. Ataca mais rápido que uma seta”. Evoca o demónio, perguntando-lhe porque quer matar a mulher.

As ligações eléctricas falham — dou por um auxiliar da igreja a mexer na caixa dos fusíveis nas traseiras — e o foco pendurado por cima de Pinda apaga-se. Uma luz amarela é projectada dos cantos da sala. De repente, a mulher colapsa no chão e começa a gritar. A multidão junta-se à sua volta enquanto ela se retorce e curva as costas.

“Ela diz que o espírito a quis matar durante o sono porque ela tinha um bom futuro. O espírito queria destruir a sua esperança”, traduz Charles.

Pinda fala numa voz autoritária e a mulher responde, cada palavra de forma martelada. O diabo fala através da mulher e resiste ao exorcismo, diz Charles. Pinda repete a palavra “libertação” uma e outra vez, a voz a ecoar nos altifalantes da igreja. A lâmpada do centro volta a acender no momento em que aponta para a mulher e grita ao demónio que se vá embora. As pessoas juntam-se ainda mais, levantando os braços. De todas as vezes, o demónio diz a Pinda que não vai sair, o pastor levanta a voz, a multidão apela a Jesus.

De repente, as pessoas ficam em silêncio. A mulher está de olhos fechados. Os que estão mais perto baixam-se para lhe tocar, rezando. Atrás, o teclista da banda da igreja toca alguns acordes num sintetizador. O exorcismo é surreal para alguém vindo de fora e que está ali no meio dos crentes a lançar um esgar sobre aquilo que para muitos é uma cerimónia típica da igreja. Mas aquilo que mais impressiona nesta cena é que, apesar dos alegados gritos de um demónio, da presença do mal, a multidão nunca parece assustada com o exorcismo, apenas excitada.

Não teme o exorcismo mas teme um grupo de crianças reunidas num canto da sala. De vez em quando, um fiel olha para estas crianças na sombra, a maioria a dormir. Ninguém a não ser os assistentes de Pinda se aproxima delas.

Charles, um homem com formação universitária, profundamente religioso, na casa dos 30, que eu conheci enquanto trabalhava no projecto de um livro e que concordou em ser o meu guia nas igrejas de Kinshasa, hesitou em ir esta noite porque sabia que iriam lá estar crianças. Elas seriam fundamentais para o desfecho da cerimónia, explicou: Pinda iria exorcizá-las de espíritos maléficos que são particularmente perigosos quando possuem os jovens.

Antes da cerimónia, quando a congregação esperava na rua suja no exterior da igreja, Charles parecia nervoso, com os braços cruzados e ombros encolhidos. A certa altura, um auxiliar da igreja veio cá fora e fica entre a rua e a extremidade de um cano de esgoto, mexendo numa pilha de trapos.

Uma criança levanta-se. Tinha estado a dormir ao lado da sarjeta e está coberta de sujidade. A multidão recua ou fica a olhar fixamente. O assistente leva o rapaz, com uns cinco ou seis anos, para a igreja. Caminha como se estivesse meio a dormir, curvado. Deixa cair um sapato que já está a desfazer-se e pára para o voltar a calçar. As pessoas abrem espaço para ele passar.

Charles recua e pega-me no braço. Inclinando-se, sussurra: “É uma criança feiticeira.”

A mãe e os filhos foram acusados de feitiçaria e expulsos de casa, acusados de causar a ruína financeira da família.

Nos últimos dois anos, durante várias visitas da Kinshasa, ouvi rumores terríveis de crianças que estrangulavam os pais enquanto eles estavam a dormir, ou que comiam os corações dos irmãos; de bandos de crianças que de noite sobrevoavam o céu, roubando dinheiro ou infectando deliberadamente pessoas com VIH ou polio. Estas crianças, diz-se, são feiticeiras. São possuídas por poderes obscuros que os levam a cometer acções nefastas, e até assassínios. Para impedir isso, as famílias devem rejeitá-las e a sociedade deve ostracizá-las. Ou então devem ser levadas à igreja — 80% dos congoleses são cristãos — onde um pastor pode exorcizá-las em nome de Deus. Bastante populares no Congo, as igrejas de reavivamento — uma expressão que reúne seitas criadas a partir de uma mistura de crenças pentecostais, carismáticas e proféticas, para além de superstições de magia negra — estão mais do que disponíveis para o fazer.

A histeria à volta das crianças feiticeiras levou a uma caça às bruxas assustadora, com resultados devastadores. De acordo com a Unicef, em 2013, o número de crianças acusadas de feitiçaria no Congo “chegava aos milhares”. As pessoas que passavam por alguma dificuldade (uma doença súbita, a perda do emprego, a morte de um parente) frequentemente atiravam a culpa para uma criança da família. Algumas delas são mortas, mas muitas mais são abandonadas, juntando-se às dezenas de milhares de crianças de rua de Kinshasa. Ou então são arrastadas para as igrejas, onde podem muito bem encontrar o seu infortúnio: de acordo com a Human Rights Watch, ficam sem água nem comida, são chicoteadas até confessarem, ou são abusadas sexualmente. “Só em Kinshasa há mais de 2000 igrejas a praticar exorcismo”, relatou a organização. Também o Departamento de Estado dos Estados Unidos descreveu, num relatório de 2013 sobre o Congo, “os exorcismos de crianças acusadas de feitiçaria que envolviam o isolamento, espancamentos e chicoteadas, a fome ou a ingestão forçada de purgantes”.

Este não é um fenómeno isolado. Apesar de ser difícil quantificar com precisão, a Unicef concluiu que as acusações de feitiçaria contra crianças estão a aumentar na África subsariana. Mas o problema é tão acentuado no Congo — em Kinshasa e noutros sítios — que o país aprovou uma lei em 2009 proibindo acusações contra crianças. Até agora, parece não ter tido grande efeito.

Muitos escritores e antropólogos explicam, como faz Mike Davis no seu livro Planet of Slums, que o que está a acontecer no Congo é o resultado da pobreza: as famílias, incapazes de alimentar ou sustentar as crianças, acusam-nas de feitiçaria para se descartarem delas. Alguns activistas congoleses descrevem o problema de forma idêntica: “Acho que é um truque para elas [famílias] se livrarem delas”, diz Marie Marguerite Djokaba, da Rede de Educadores de Crianças de Rua (Reejer). “O problema das crianças feiticeiras está relacionado com a situação económica. É uma desculpa para expulsarem as crianças.”

Mas esta explicação de pobreza e conveniência parece incompleta. Não tem em conta a forma como os antecedentes sociais no Congo — um país onde a esperança de vida é de cerca de 50 anos e o PIB per capita ronda os 300$ — se ligam com a religião. As igrejas de reavivamento, os seus líderes e as crenças extremadas que promovem, dão às pessoas uma forma de lidar com um lugar como Kinshasa. Chamada de Kin, a bela durante a época colonial, a capital congolesa — com os seus extensos bairros de lata, as suas doenças generalizadas, os seus refugiados das várias guerras do país e as suas poucas perspectivas de futuro — tem agora o nome de Kim, o caixote de lixo.

Os “kinois”, como são conhecidos os habitantes da cidade, parecem estar à procura de um poder sobre a sua vida: uma forma de a compreender, de a controlar, de eliminar o terror. Tragicamente, a fé religiosa que promete a protecção do mal — e que coloca a fonte desse mal em seres tão presentes e vulneráveis como as crianças — tornou-se a resposta.

A história da religião no Congo é a de pontos de vista que primeiro colidem e depois se fundem. A crença nos espíritos e na magia tem há muito um lugar nas tradições dos bantu, o povo que há milhares de anos começou a espalhar-se a partir do que é agora o Sudoeste da Nigéria até ao centro de África. Depois de os portugueses terem introduzido o catolicismo na costa do Congo no final do século XV, as crenças tradicionais coexistiram com o cristianismo. Muitos congoleses iam à igreja e continuavam a procurar médicos feiticeiros para aconselhamento e cura. Esta transformação deu-se em simultâneo com uma série de mudanças sociais e económicas: o comércio de escravos e mais tarde o regime do rei Leopoldo II da Bélgica, cujos funcionários escravizaram a população do Congo para a agricultura e o marfim.

Apesar de os primeiros evangelistas pentecostais ocidentais terem visitado o Congo no início do século XX, a onda maior chegou com o fim da colonização, pregando a promessa de uma ligação mais directa entre Deus e os fiéis, com o poder da cura divina.

“Os pentecostais viram o poder da cura como uma boa notícia para os pobres e afligidos”, escreve Allan Anderson, especialista em religião na Universidade de Birmingham. A promoção de “sinais e exclamações”, nota, foi o que “levou ao crescimento rápido das igrejas pentecostais em muitas zonas do mundo”.

Contudo, como outras igrejas cristãs do Congo, a influência pentecostal foi reprimida durante a ditadura de Mobutu Sese Seko, que governou entre 1965 e 1997. Com o apoio dos EUA durante a Guerra Fria, Mobutu pilhou a vasta riqueza mineral do país e guardou os fundos do Estado em contas bancárias na Suíça. Mas também afastou as influências ocidentais na cultura congolesa. Proibiu o uso de nomes cristãos e enfatizou as crenças tradicionais africanas. Os seus pagamentos a médicos feiticeiros ascenderam a 3% do orçamento do Estado (mais do que todo o Ministério da Saúde). Durante o Campeonato do Mundo de futebol de 1974, chegou a enviar um avião cheio de feiticeiros para lançarem feitiços às equipas adversárias (a sua equipa sofreu uma derrota pesada).

Quando finalmente Mobutu levantou as restrições às actividades das igrejas em 1990, o pentecostalismo começou a expandir-se, ao mesmo tempo que o tecido social do Congo se desfazia.

O desespero económico e os distúrbios políticos já reinavam quando Mobutu caiu do poder, e rapidamente o país foi levado para uma guerra que envolvia sete estados vizinhos, entre eles o Ruanda, Uganda e Angola. Instigada por uma procura mundial dos recursos congoleses, como o ouro, diamantes ou coltan (um mineral necessário para muitos aparelhos electrónicos), a guerra matou mais de 5 milhões de pessoas, a maioria devido a doenças e fome.

Desde então, conflitos e pobreza continuaram a atacar o Congo. Hoje em Kinshasa, um megabairro de lata de entre 8 e 10 milhões de pessoas (as estimativas variam e o censo está desactualizado), as pessoas estão sujeitas a todos os tipos de predadores. Soldados e polícia exigem por rotina subornos aos pobres, que mal têm para comer; carrinhas-táxi, chamadas “espíritos da morte”, vagueiam pelo trânsito indiferentes aos transeuntes; gangues organizados de jovens, chamados “kulunas” — da expressão portuguesa coluna militar — fazem raides nocturnos pelos bairros pobres. Doenças como a sida, cólera, tifo, febre amarela, hepatite, tuberculose e disenteria são galopantes.

Segundo José Mvuezolo Bazonzi, cientista político da Universidade de Kinshasa, a brutalidade da vida no Congo criou as condições ideais para a propagação das igrejas de reavivamento, passando de uma presença limitada durante a década de 1990 para uma presença descontrolada actualmente. (Uma condução nocturna por Kinshasa revela muitas igrejas de reavivamento meio construídas, com as congregações visíveis entre as paredes por terminar. Oito das 13 estações de rádio religiosas da capital pertencem a estas igrejas, tal como nove das 11 estações de televisão.)

Rejeitando formas de autoridade e oferecendo solidariedade e apoio através da fé, as igrejas de reavivamento devem a sua popularidade à “busca de identidade [do povo congolês], à sobrevivência de milhares de almas desesperadas perante a adversidade e circunstâncias políticas e socioeconómicas precárias”, escreve Bazoni.

A popularidade da igreja também fica a dever-se à fé híbrida que prega. Pastores do reavivamento seguem linhas de fé que nem sempre são consistentes, mas que ainda assim apaziguam crentes que procuram ao mesmo tempo mudança e tradição nas suas vidas.

As igrejas misturaram a convicção bantu de que os espíritos podem influenciar as questões mundanas com a doutrina pentecostal de guerrilha espiritual: o demónio tenta destruir as almas e os cristãos têm de batalhar contra o demónio com a sua fé. O que se perdeu da tradição bantu foi a ideia, descrita pelo antropólogo britânico Victor Turner, de que os sofredores podem reconciliar os seus problemas com os espíritos que os infligem. Em vez disso, e como de acordo com as crenças actuais os espíritos são culpados pelo sofrimento, o crente deve perseguir os intermediários humanos dos espíritos e expulsar o demónio.

Por isso as pessoas compram pregadores que supostamente têm a “unção”, o poder transformador de Deus para ultrapassar qualquer mal ou problema. Quando corre a palavra de que um pastor curou uma cegueira, fez um aleijado andar ou ajudou alguém a encontrar trabalho — a unção opera também na esfera económica — as pessoas acorrem à sua igreja. “A boa notícia em África, declaram os pastores pentecostais, é que Deus responde a todas as necessidades das pessoas, incluindo a sua salvação espiritual, a cura física e outras necessidades materiais”, escreve Anderson.

Pinda, chamado de profeta pelos seus fiéis, é conhecido por ter grandes poderes curadores. Quando eu lá fui, um panfleto na parede exterior da sua igreja prometia uma maratona de 14 dias de “profecia e salvação” e mostrava fotografias de Pinda a curar as pessoas dos seus males. Muitos entre a multidão que assistia à sua cerimónia da meia-noite eram magros ou doentes; alguns apoiavam-se em muletas, e uma mulher tinha a pele da cara queimada. Pinda prometia a todos libertação da dor e da doença desde que a sua crença em Deus fosse suficientemente forte.

“Temos de entrar em guerra na vida”, gritava. “Deus não deu a sua confiança aos médicos. Não confia nos médicos porque eles têm os seus limites. Tenham fé no eterno. Os médicos não vos podem curar, só o eterno.”

Mas não foi a sua capacidade de cura que valeu a Pinda a maior veneração. “Os pastores com mais unção”, explica Charles, “são aqueles que conseguem expulsar os demónios de dentro das crianças feiticeiras”.

As crianças feiticeiras tornaram-se uma obsessão nacional em grande medida porque as igrejas do reavivamento as condenaram como o mais virulento dos males. As teorias sobre feitiçaria são abundantes em Kinshasa, e muitas igrejas vêem as crianças como os transmissores perfeitos dos maus espíritos que trazem a desgraça ao mundo. Não podem ser evitados por haver tantas em toda a parte. E quando os espíritos invadem uma criança não causam apenas dor física ou outra, tornam os seus veículos em feiticeiros, escondendo-se por trás do olhar inocente da juventude e infligindo o mal aos outros. “As crianças feiticeiras assustam mais as pessoas porque não sabemos quando elas podem actuar ou que armas podem usar. Toda a gente tem medo delas”, diz Charles.

É verdade que as crianças estão por todo o lado, exigindo cuidados das famílias, do Estado e das igrejas que nem sempre podem ser dados. O Congo tem uma taxa elevada de fertilidade — seis crianças por mulher — e a média de idades no país era de apenas 17 anos em 2010, segundo as estatísticas das Nações Unidas. Especialmente em Kinshasa, a população de crianças sem abrigo disparou. Djokaba, da Reejer, diz que um inquérito de 2010 sugeria que mais de 20 mil crianças viviam nas ruas da capital — eram 13 mil em 2007. Em 2011, a Unicef estimou que o número chegava aos 30 mil. Estas crianças são chamadas “shegue”, uma abreviatura de Che Guevara, pela força que têm de ter para sobreviver.

A sua ubiquidade e vulnerabilidade também as tornam facilmente em bodes expiatórios. Tal como na caça às bruxas de fervor religioso na Europa e na América há alguns séculos, que perseguia viúvas ou mulheres solitárias, talvez as crianças do Congo sejam acusadas de feitiçaria por serem os membros mais vulneráveis da sociedade. Talvez algumas sejam também acusadas por serem os símbolo da desintegração dos laços familiares e comunitários, causada pelas décadas de conflito no Congo. O antropólogo belga Filip de Boek descreveu as crianças de Kinshasa como “as intersecções humanas onde as rupturas e as fendas do mundo africano em mudança se manifestam”.

Segundo a Unicef, antropólogos e ONG nacionais e internacionais, quase qualquer coisa pode desencadear uma acusação de feitiçaria: não apenas doença, morte ou outra perda na família, como a fome ou doença da própria criança, ou até a precocidade ou uma zanga adolescente. O grupo Save the Children relatou que os sinais incluem “sujidão, lábios ou olhos encarnados, surdez, fealdade, um corpo jovem com uma cara envelhecida, epilepsia”; ou ser-se “desarrumado, desobediente, triste, com atraso mental, mal educado, raivoso, misterioso, desrespeitador, impulsivo, insubmisso”; e ainda comportamentos como “não dormir à noite ou dormir mal, comer muito, molhar a cama, defecar nas roupas, falar consigo próprio, sonambulismo, apanhar lixo, vaguear, não estudar, sair mesmo quando se está doente”.

Em geral as crianças não conseguem contestar as acusações e há poucos locais onde possam encontrar ajuda. O Governo é mais frequentemente um inimigo do que um aliado. Em 2013, lançou uma operação chamada Likofi (“murro”, em lingala) para apanhar delinquentes a viver na rua; alegadamente, pelo menos 20 pessoas, 12 delas crianças, foram mortas. A Unicef, que diz que 70% das crianças de rua que recebem ajuda dos seus programas foram acusadas de feitiçaria, dá assistência aos abrigos locais, orfanatos, programas de treino vocacional e a centros que reintegram as crianças nas suas famílias. Mas há mais crianças necessitadas do que recursos para as ajudar.

Muitas crianças acusadas de feitiçaria encontram refúgio nas igrejas porque não vêem outra opção, ou porque acreditam naquilo que se diz sobre elas e querem ajuda — ironicamente, procurando-a nas instituições que são cúmplices com a origem do seu sofrimento.

Falei com dezenas de crianças em Kinshasa acusadas de feitiçaria, e a maioria parecia confusa quando se perguntava se acreditavam que estavam possuídas. Algumas diziam simplesmente que não, mas outras respondiam que sim, uma vez que tal lhes fora dito por um pastor. A maior parte olhava para o adulto mais próximo para saber o que responder.

Ao procurar ajuda nas igrejas, as crianças correm os seus riscos. As igrejas do reavivamento não só são cúmplices na criação do medo de crianças feiticeiras, como se aproveitam dele quando os pais pagam para ter o filho exorcizado e quando os paroquiantes vêm assistir ao espectáculo. As igrejas cometem abusos que apenas aumenta a sua popularidade. Congoleses contaram-me que há pastores que expulsam os espíritos cuspindo para a boca das crianças ou vertendo a cera das velas da igreja nos seus corpos até elas confessarem. Um pastor terá obrigado uma criança a ficar de pé numa sala escura durante dias, nunca a deixando sentar-se, e depois obrigando-a a beber azeite até vomitar. O pastor inspeccionou o vomitado para ver se continha carne humana ou dinheiro — dois supostos sinais de feitiçaria.

Outros pastores, no entanto, oferecem abrigo para além de superstição. Na igreja e orfanato Coração e Mãos de Cristo, encontro-me com os pastores Jerôme Anto Kashala e Shium Bukassa Shidisha. Falam-me das crianças que protegem, incluindo um rapaz cujos pais o culpavam de uma doença que matou o seu irmão e acusavam-no de ter comido o seu coração. Os pais bateram-lhe, amarraram-no e fizeram-lhe repetidos cortes na pele com uma faca, tentando que ele confessasse. Acabaram por tirar um pneu do lixo na rua, puseram-no por cima e incendiaram-no. Estava já com queimaduras graves quando conseguiu fugir. Hoje, trabalha para conseguir um certificado de mecânico.

Mas a vontade dos pastores de cuidar de crianças acusadas de feitiçaria parece ser complicada pelas suas convicções religiosas. Quando pergunto a Kashala e Shidisha se alguma vez tinham encontrado verdadeiras crianças feiticeiras, olham nervosamente um para o outro. “Bem, havia uma”, diz Kashala. “Trouxe-nos problemas sérios, chegou ao ponto de matar outra criança. Começou a dar comida podre aos outros até que um acabou por morrer.” Charles está comigo e acena com ar grave, concordando. Os pastores acabaram por determinar que a rapariga não poderia ser salva, e não tiveram outra alternativa senão mandá-la embora do orfanato, de volta para a família que a tinha expulsado.

Após várias horas de uma cerimónia frenética e já tardia, quando Pinda finalmente chama as cinco crianças que estavam sentadas silenciosamente a um canto, a sala emudece. Os fiéis não se aproximam tanto como dos outros exorcismos, em vez disso recuam. Fico apreensivo, pensando nas histórias de exorcismos cruéis.

Mas o profeta é amável, encorajando as crianças a falar. Olham cautelosamente, evitando a multidão. Um a um, falam suavemente, as vozes mal se ouvem no microfone de Pinda; ele completa as palavras que faltam. Uma menina de dez anos explica que, depois da morte da mãe, o pai culpou-a. Um rapaz com uma T-shirt do macaco “George, o Curioso” murmura que os seus pais morreram e que outros membros da família o acusaram de ter comido os seus corações. Um menino magro de 12 anos com uma camisa branca às riscas, de braços cruzados, mãos debaixo dos sovacos, diz que os pais o acusaram de ser um feiticeiro e abandonaram-no em Kinshasa; ganha agora a vida a vender sacos de plástico na rua. O baterista da banda da igreja faz soar suavemente um prato para pontuar os testemunhos das crianças.

Pinda fala sobre os falhanços dos pais: “Se o vosso filho é feiticeiro, não o podem expulsar.” Também refere o caso de crianças que ultrapassaram os demónios que tinham dentro de si e se tornaram grandes homens. A audiência continua em silêncio e pensativa, com Pinda a atiçar-lhes o medo das crianças feiticeiras, ao reconhecer que esse receio é muito real.

Todos rezam em voz baixa para libertar as crianças. Quando a cerimónia se aproxima do fim, bem depois das três da manhã, os assistentes de Pinda vendem pequenas garrafas de azeite pela sala e as pessoas levam-nas ao pastor para ele as abençoar. Esfregam o azeite na cara, braços e peito, no cabelo, como protecção dos espíritos maléficos. Pinda pede depois dinheiro para apoiar a continuação da construção da igreja.

Esta não é a cena dramática a que temi ir assistir. Será que Pinda está a ser assim tão gentil com as crianças devido à presença de um estrangeiro? (Foi ele que me convidou para a sua cerimónia.) Será que está habilmente a evitar violar a lei que impede acusar crianças de feitiçaria? Ou será que há mais alguma coisa a passar-se?

Pergunto a Charles. Ele responde que às vezes os exorcismos de crianças são feitos em privado por serem difíceis. Talvez estas crianças já tenham sido salvas.

Dias depois da cerimónia, procurando entender a sua estranha relação com as crianças, encontro-me com o profeta no seu escritório — uma pequena sala com três cadeiras incompletas, uma secretária e um baixo eléctrico pousado num canto. Lá fora estão dezenas de pessoas à espera de ter um encontro particular com Pinda. Todos esses encontros, diz-me um dos fiéis, têm de ser pagos, por muito pequena que seja a quantia.

Pinda explica-me que mais de 60 crianças feiticeiras vivem na sua igreja — crianças como o rapaz que tinha estado a dormir ao lado da sarjeta antes da cerimónia a que eu assisti. Vieram espontaneamente ter com ele ou foram levados pelos pais devido à sua fama de expulsar os espíritos. Apresenta-me a alguns deles, entre os 4 e os 12 anos. Tinham sido acusados de ter levado ao despedimento dos pais, ou de ter matado familiares. A alguns disseram-lhes que as suas doenças, como a polio, eram sinais de estarem possuídos por espíritos e foram expulsos de casa.

Quando as crianças saem, Pinda agarra no baixo eléctrico. Recosta-se na sua cadeira e começa a percorrer as cordas. Com voz grave, diz-me que é cansativo ter tantas crianças à volta e que não pára de encorajar as pessoas a não as abandonar. Foi até a instituições sociais pedir ajuda, mas foi rejeitado.

Ele acredita que as crianças são feiticeiras? Responde que na maioria “são só acusações”. A oração mostra-lhe em regra geral que elas não estão possuídas. Mas às vezes os testemunhos dos pais dizem o contrário. E desde que os pais digam que um dos membros da família está doente, por exemplo, um espírito maligno tem de estar na criança, precisando da sua atenção. Alguns pais trazem os filhos várias vezes até conseguirem dizer a Pinda que “há paz, eles dormem sossegados e já não há doenças na família”.

O facto de Pinda fazer dinheiro com estas visitas e de a cura destas crianças ter elevado o seu estatuto, complica a explicação. Talvez Pinda não queira condenar estas crianças como fazem outros pastores, ou talvez a sua crença na feitiçaria não seja tão forte quanto a de outros. Mas a expulsão dos espíritos de crianças valeu-lhe o título de profeta — convenceu a sua congregação que o poder de Deus o percorre e que os pode salvar de todo o sofrimento, toda a dor e todas as dificuldades. Arrasta centenas para a sua igreja durante a noite, para ficarem de pé durante horas ao calor, ligando-se entre si e, sentem eles, a um poder que está para lá do seu alcance.

Pergunto-lhe se acha que melhorou as vidas das crianças acusadas pelas quais rezava. Alguns sim — refere um rapaz que foi salvo e voltou para a família. Depois fala de uma rapariga de 13 anos cujos pais a acusaram da morte de duas pessoas. Ela vive ainda na igreja.

Pinda hesita.

“Ela não está nada bem”, diz ele. “Porque isto é uma igreja e depois das orações as pessoas vão embora. Até eu vou para casa”.

Exclusivo PÚBLICO/ Foreign Policy/ Washington Post   

 


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