No bairro de Shu’Fat, em Jerusalém Oriental, o palestino Iyad Al-Shaer estava em pé no interior destruído de uma estrutura modesta de blocos de concreto. A construção, uma adição à casa de Iyad, devia ser a nova residência de seu irmão, Baser, e a noiva. Mas a casa toda mobiliada, com um quarto coberto de corações que Baser tinha pintado para seu futuro filho, agora tem três buracos enormes no teto.
Poucos dias depois do fim da construção, a municipalidade controlada por israelenses emitiu uma ordem de demolição para a casa de Iyad construída “ilegalmente”, isto é, sem uma caríssima permissão fornecida pelo mesmo conjunto de autoridades. Sem poder arcar com uma dispendiosa batalha legal, ele escolheu destruir a estrutura.
Autodemolições como essa começaram alguns anos atrás e têm continuado – de alguma forma, fora do radar da mídia mainstream – desde então, com palestinos obrigados a destruir suas próprias casas para evitar as multas cada vez maiores impostas pela municipalidade.
Apesar de a população palestina na cidade ter quadruplicado para mais de 300 mil desde 1967, as autoridades municipais zonearam somente 9% das terras de Jerusalém Oriental para construções palestinas. E mesmo com esse espaço separado, as permissões são raramente garantidas, e o resultado é o espalhamento de construção palestinas “ilegais” – que, claro, as autoridades israelenses podem ordenar que sejam demolidas.
Dezenas de milhares de residentes palestinos de Jerusalém vivem sob a ameaça constante de ter suas casas demolidas pelas autoridades israelenses, o que é parte de uma política de deslocamento que conta com um grau surpreendente de apoio popular por mais de quatro décadas.
“Sabemos que existem cerca de 20 mil casas ‘ilegais’ palestinas em Jerusalém Oriental”, disse Jeff Halper, do Comitê Israelense Contra Demolições de Casas (ICAHD em inglês). “Isso representa cerca de um terço das habitações palestinas.”
“Eles não nos consideram cidadãos, então, eles pressionam. Não é algo pessoal – eu sou um de muitos”, disse Iyad. “Eles nos pressionam para sair de Jerusalém. Eu chamo isso de transferência suave.”
Varrer qualquer palestino ou pessoa abertamente árabe da cidade não é uma prática israelense recente. O que é relativamente novo, no entanto, são as autodemolições infligidas à comunidade palestina – as penalidades financeiras deixam as pessoa sem outra opção a não ser destruir suas próprias casas e seguir em frente. Enquanto isso, Israel não se compromete; casas estão sendo derrubadas sem a publicação de fotos incômodas para mostrar a limpeza étnica sistemática na área – nada de tratores, nada de jovens israelenses carregando M-16 e nada de mulheres chorando. É um milagre de relações públicas.
“Para Israel, é muito melhor que você destrua sua própria casa”, disse Iyad. “A mídia não precisa ficar sabendo.”
De acordo com Richard Falk, relator especial das Nações Unidas sobre direitos humanos em territórios palestinos ocupados, as políticas de Israel em Jerusalém são “características inaceitáveis de colonialismo, apartheid e limpeza étnica”.
Numa entrevista coletiva em Genebra, no final do mês passado, Falk acusou Israel de criar uma situação impossível para os palestinos em Jerusalém, usando processos burocráticos como “revogação de permissões de residência, demolições de estruturas residenciais construídas sem a permissão de Israel e despejos forçados”, tudo para pressionar famílias palestinas a sair da cidade.
Para poder construir legalmente em Jerusalém, a pessoa deve adquirir uma permissão de 150.000 shekels das autoridades israelenses [cerca de R$ 96.700]. As permissões raramente são dadas a palestinos, e aqueles que têm a sorte de conseguir uma encaram dificuldades para pagar a taxa, já que aproximadamente 80% dos palestinos em Jerusalém Oriental vivem abaixo da linha da pobreza. Consequentemente, milhares ficam sem outra opção a não construir casas sem a permissão exigida, colocando suas moradias sob o risco de serem demolidas.
“É uma sensação péssima”, disse Iyad, descrevendo o dia em que teve que quebrar o teto da casa dos sonhos do irmão. “Quando você começa a quebrar sua própria casa… Sou homem, mas eu estava chorando. Ainda sou um ser humano – tenho sentimentos. Tentei ser um homem, mas o homem é um ser humano.”
De acordo com o Centro de Orientação Palestino, todas as famílias cujas casas foram demolidas sofrem um trauma considerável, mas “aqueles que destroem suas próprias casas têm que suportar uma vergonha adicional, pois eles estariam se afastando da posição nacional de resistir às políticas de ocupação”.
Em fevereiro de 2014, tratores israelenses chegaram à porta de Maher Sorri, ameaçando demolir a casa que ele tinha construído para sua esposa e filha. A municipalidade tinha vindo originalmente para destruir uma casa vizinha, mas quando os moradores mostraram que resistiriam de forma violenta à demolição iminente, as forças da municipalidade voltaram seus olhos para a casa de Maher, que tinha sido construída sem permissão três anos atrás.
Parado em frente à sua casa destruída, Maher me disse: “Eles não tinham emitido uma ordem de demolição – nenhum aviso prévio, nada”.
O palestino teve que “escolher”: destruir sua própria casa ou pagar os 50.000 shekels [cerca de R$ 32.000] de multa pelos “serviços” de demolição da municipalidade de Jerusalém.
“É uma piada comum em Jerusalém Oriental – o único serviço prestado pela municipalidade aos palestinos são serviços de demolição”, disse Sarit Michaeli, porta-voz da organização de direitos humanos israelense B’Tselem.
Sem ninguém a quem recorrer, Maher foi forçado a resolver o problema com as próprias mãos. Ele contratou um parente que tinha um trator para destruir sua casa, economizando 47.000 shekels [R$ 30.000] no processo. A família vive agora na casa do pai de Maher, seis pessoas dividindo dois quartos pequenos. “Ficamos arrasados”, Maher disse. “[Antes], vivíamos como uma família, sozinhos e com privacidade.”
A B’Tselem contou cinco casos de autodemolição em Jerusalém Oriental apenas neste ano, mas mais casos podem não ter sido reportados. E enquanto esse fenômeno está em ascensão, Israel também não hesita em sujar as mãos. De acordo com Jeff Halper do ICAHD, apenas em novembro de 2013, autoridades israelenses emitiram duas mil ordens de demolição para Jerusalém Oriental. Mais casas dessa municipalidade foram destruídas em 2013 do que nos anos de 2011 e 2012 juntos, marcando um pico em cinco anos, de acordo com estatísticas compiladas pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA em inglês).
Este ano, as demolições continuam em ritmo acelerado. Hyat Abu-Saleh, um analista do OCHA, nos disse que até o dia 26 de março, 132 estruturas foram destruídas em territórios ocupados, incluindo 19 casas em Jerusalém. A maioria dessas demolições foram feitas com os tratores municipais e vários esquadrões obedientes de policiais israelenses.
Um caso particularmente triste aconteceu no começo de fevereiro, no bairro de Wadi Qadoom em Jerusalém Oriental. Por volta das cinco e meia da manhã do dia 10 de fevereiro, um esquadrão de 51 policiais israelenses entrou na casa do palestino Mohammed Swahar, de sua esposa judia israelense Norean e de seus cinco filhos.
Sentado ao lado da tenda da Cruz Vermelha que hoje serve como casa da família, Norean explicou que, apenas dois meses antes, a família tinha gastado todas as suas economias para renovar a casa inteira. Um novo quarto para o filho, uma TV de plasma e até uma área de artesanato para as crianças.
“Quando eles vieram, eles não nos deixaram tirar nada de dentro da casa”, disse Norean. “Se tirávamos alguma coisa, eles arrancavam de nossas mãos e destruíam. Fiquei ali com os meus filhos, vendo eles destruírem tudo que tínhamos construído.”
O evento traumático veio de surpresa para a família Swahar. “Nunca recebemos uma ordem de demolição, nenhuma em 20 anos”, disse Norean. “A municipalidade não tinha uma resposta. O vice-presidente se chama David, nós nos encontramos com ele e eu disse que nossa casa tinha sido destruída. Ele disse: ‘Não sei nada sobre isso’.”
A demolição, como já era de se esperar, abalou as cinco crianças Swahar. “As crianças ficaram aterrorizadas – agora, elas molham a cama à noite, porque eles entraram na casa com cães às cinco da manhã”, disse Norean. “[As crianças] estavam dormindo em suas camas quando 51 [policiais] entraram na casa. Meu marido estava dormindo. Os policiais bateram nele.”
Quando perguntei sobre a situação geral em Jerusalém Oriental, Norean disse: “Eles não querem árabes aqui. Eu era judia – cresci em Israel e servi ao exército. Quando conheci meu marido, eu me converti. Agora vejo como eles tratam os árabes e os muçulmanos aqui. É desumano.”
Além de um desrespeito aos direitos básicos, as leis restritivas de construção são parte de uma política israelense oficial que visa manter uma maioria judia na cidade de Jerusalém. E esse elaborado sistema de leis, políticas e práticas discriminatórias diminuem as esperanças palestinas de reivindicar Jerusalém um dia como capital de seu futuro estado.
Como Shawan Jabarin, diretor da organização de direitos humanos palestina Al-Haq, nos disse: “Isso faz parte de um plano a longo prazo para minimizar e diminuir o número de palestinos em Jerusalém. Eles querem mudar o mapa demográfico, mudar o mapa geográfico, o mapa histórico e mesmo a narrativa. A demolição de casas é apenas um dos métodos que eles estão empregando para implementar esse plano”.
Claro, pouca atenção tem sido dada às ramificações disso tudo na comunidade palestina da cidade. Como Iyad nos disse: “Nós nos preocupamos com o futuro de nossos filhos. Não temos esperança, não temos opções. A única opção é viver atrás do muro, viver fora de Jerusalém. Eu sou de Jerusalém – por que eles querem me forçar a viver atrás desse muro ilegal? Eu sou de Jerusalém. Eu nasci aqui.”
Fonte: Vermelho