Ifran é uma refugiada somali que vive no bairro de Eastleigh em Nairóbi, Quênia. Ela vende chá num carrinho para sobreviver e costuma ganhar cerca de 150 xelins quenianos por dia (menos de R$ 4,50). Novembro passado, a vida dela mudou quando a polícia local começou a intimidá-la exigindo suborno, acusando-a de terrorista e ameaçando-a com deportação. “Nosso maior problema é o assédio da polícia.” Ela me contou por telefone que “eles perguntaram se eu era ilegal. Mostrei meu cartão de registro e eles o tomaram de mim; só me devolveram quando dei a eles o dinheiro que tinha ganhado com o chá”.
Ifran – juntamente com os outros refugiados dessa história – pediram para que seus nomes verdadeiros não fossem publicados, já que eles temem uma retaliação. Ela está entre os mais de 400 mil refugiados no Quênia que enfrentam o risco de repatriamento involuntário.
Especialmente em Eastleigh, os policiais, que são parte da Unidade Policial Antiterrorista do Quênia, detêm adolescentes e jovens somalis do sexo masculino de forma indiscriminada – acusando-os de fazer parte do Al-Shabaab, o grupo terrorista responsável pelo ataque ao shopping Westgate, e os ameaçam de deportação.
A tensão envolvendo os refugiados somalis começou no dia 21 de setembro do ano passado. Homens armados não identificados tomaram o shopping center Westgate em Nairóbi. O tiroteio durou quatro dias, deixou 67 mortos e mais de cem feridos. Apenas duas semanas depois, os políticos quenianos começaram a expressar seu ultraje – e, mais importante, a usar isso para forçar suas agendas políticas, fechar os acampamentos de refugiados e chutar os somalis para fora do país.
No dia 10 de novembro, a ACNUR (a agência de refugiados da ONU), o governo queniano e o governo somali assinaram um acordo de repatriamento. O acordo definiu as responsabilidades e reforçou que o repatriamento deve ser voluntário. A ACNUR fez questão de ressaltar que só apoia a ideia se os refugiados saírem voluntariamente, já que, de outro modo, isso seria uma violação da Convenção de Genebra.
As responsabilidades do Quênia incluem “fornecer escolta de segurança para os comboios até a fronteira com a Somália e continuar fornecendo proteção e assistência aos refugiados até que eles saiam do país”, e a ACNUR incluiu “garantir o caráter voluntário, seguro e digno do processo”. O acordo, no entanto, não menciona o destino dos refugiados não registrados – “cerca de meio milhão, segundo o vice-presidente queniano William Ruto, que podem não desfrutar das proteções, sendo forçados a retornar”. Esse buraco no acordo é grande – especialmente porque os oficiais quenianos pararam de fornecer cartões de registro e policiais quenianos são acusados de pedir os cartões dos refugiados somalis e jogá-los fora ou destruí-los.
Fatima é uma mãe solteira de nove filhos que veio para o Quênia em 2000. Ela também ganha a vida vendendo chá e me contou que “por ser somali, sou discriminada quando procuro emprego. Eles me dizem ‘aqui não é a Somália. Você devia voltar para a Somália’. [Alguém da] Câmara Municipal de Nairóbi mandou quebrar meu carrinho de chá e me prender. A polícia queniana exige o pouco dinheiro que ganho vendendo chá. Eles dizem que tenho que pagar alguma coisa ou eles vão me levar para a delegacia e me prender. Meus filhos não terão ninguém que cuide deles. Então dei o dinheiro a eles, mas agora não tenho como alimentar meus filhos”.
Dentro do acampamento de refugiados de Dadaab, a situação não é muito melhor. Rações de alimento e ajuda foram cortadas e os suprimentos continuam diminuindo. Organizações de ajuda humanitária estão com o orçamento cada vez mais apertado com o crescimento dos campos de refugiados sírios próximos. Os Médicos Sem Fronteiras alertaram que o corte na ajuda, mais a falta de informação, podem resultar em repatriamento involuntário.
Durante uma conferência de repatriamento em Eastleigh organizada pela ACNUR e outras ONGs quenianas em novembro, uma mãe somali disse que “garotos estão sendo presos aqui [em Eastleigh] todos os dias, acusados de serem do Al-Shabaab. Há pessoas sendo presas todos os dias pela polícia, especialmente de Begani, mesmo sendo inocentes. Às vezes, a polícia pede 500 mil, 1 milhão ou 2 milhões de xelins quenianos. Todo dia nossos meninos ficam em casa, com medo de serem presos e condenados”. O depoimento foi seguido de aplausos calorosos e muitas cabeças concordando. O apresentador da conferência respondeu com “obrigado e, por favor, vamos nos focar nas questões sobre o retorno”. Aparentemente, a conexão entre as duas coisas se perdeu no meio do caminho.
Sahara vive no Quênia desde 1994 e é a única provedora de quatro filhos. Ela contou que os oficiais da polícia antiterror foram à sua casa e atacaram sua família durante a noite. “Eu estava no portão [da minha casa] quando eles vieram por trás e começaram a nos bater. Um parente, um adolescente de 18 anos que tinha vindo me visitar, foi levado à força. Não o vimos mais e eles levaram o dinheiro que eu tinha em casa à força.”
Os EUA, juntamente com o Reino Unido e a Rússia, treinaram a mesma unidade policial que está assediando e prendendo os refugiados de forma indiscriminada. Um oficial de contraterrorismo queniano usou a Baía de Guantánamo e a ocupação militar do Afeganistão como exemplos da abordagem antiterrorista no Quênia. Ele disse à Open Society Justice Initiative: “Nesse trabalho, você não pode seguir as regras”. Ele comparou as abordagens extrajudiciais à situação explicando: “É por isso que existe Guantánamo e por isso os britânicos estão prendendo pessoas no Afeganistão”.
O Quênia recebe financiamento de vários governos ocidentais, incluindo Reino Unido e EUA. Os EUA, especificamente, começaram a financiar a polícia antiterror queniana em 2003 com US$10 milhões. Eles vêm enviando dinheiro desde então; apenas em 2013, os Estados Unidos doaram US$7,75 milhões – nada disso foi para os salários da polícia, mas para treinamento e equipamento.
Mohammed, um somali-queniano de 24 anos que mora em Eastleigh, disse que essas táticas alimentam o recrutamento pelo Al-Shabaab. Mesmo que a grande maioria dos assediados não tenha laços com o grupo, “há dois meios que o Al-Shabaab usa para convencer os jovens a se juntar a eles: primeiro eles dizem que vão ajudar os refugiados e dar dinheiro a eles. Eles têm como alvo jovens muito, muito pobres. Segundo, há o assédio policial. Eles dizem aos jovens que se você fizer parte do grupo deles, a polícia não vai mais incomodar, e é assim que isso volta para eles”.
Depois de uma explosão em Nairóbi assumida pelo Al-Shabaab em 31 de março de 2014, um ataque que matou seis pessoas, o assédio e o registro em massa alcançaram níveis sem precedentes. Sob o nome de Operação Usalama Watch, “as forças de segurança quenianas vêm invadindo casas na capital, cercando milhares de refugiados somalis e somalis-quenianos”, de acordo com a Al Jazeera. Milhares de refugiados, supostamente aqueles incapazes de pagar os subornos, estão sendo detidos em Kasarani, um lugar que algumas pessoas se referem como um campo de concentração. Alguns refugiados sem cartões de registro foram deportados. Estupros e espancamentos foram relatados nos centros de detenção e uma morte foi confirmada.
Em fevereiro, a Anistia Internacional publicou um relatório chamado “No Place Like Home”, que argumenta que o clima de medo criado pela polícia nos bairros de refugiados como Eastleigh está sendo usado como ferramenta para deportar refugiados somalis sob o disfarce de “repatriamento voluntário”. Refugiados somalis relataram péssimas condições de vida, restrições de movimento, impossibilidade de pagar os subornos e medo de estupro e espancamento pela polícia como razões pelas quais os refugiados decidem voltar para a Somália. Durante períodos anteriores de repressão policial aos refugiados somalis no Quênia (em novembro de 2012 e janeiro de 2013), o número de refugiados que pediram permissão para retornar a Somália subiu para 3.200, quando a média normal é de 150 por mês. O ministro do Interior queniano acusa a Anistia Internacional de tentar retardar o processo de repatriamento.
Ahmed, um refugiado de 25 anos, disse à Anistia Internacional que “aqui, no Quênia, é como uma prisão. À noite não podemos sair de casa, durante o dia podemos ser presos. No momento, não é seguro voltar para a Somália, ouvimos falar em matanças lá, mas a situação aqui é desesperadora… então, em vez de ficar aqui, me deixe voltar. Aqui não há liberdade”.
Muitos outros refugiados citam o assédio da polícia como uma razão para muitos terem retornado à Somália recentemente: Abdisalam, que veio da Somália sete anos atrás, contou: “eles nos dizem para fazer ‘repatriamento voluntário’ [e] que ‘as pessoas não vão ser forçadas’, mas isso é repatriamento forçado, a polícia aqui está usando violência e agredindo as pessoas no meio da noite. Tanta gente já voltou para a Somália! Eu conhecia um cara que tinha um quiosque aqui, ele tinha uma pequena loja e teve que vender tudo. Ele me disse: ‘Não posso ficar aqui, fui parado três vezes, quando fui para a cadeia… tive que pagar 50 mil [xelins quenianos]”.
A ideia de voltar para um país arrasado pela guerra não é muito popular entre os refugiados. Ahmed, que é cristão praticamente, teme não contar com nenhuma proteção se voltar. “Eu estarei correndo mais perigo do que todos os outros. Eles vão me matar.”
Sahara, que veio para o Quênia quanto tinha 16 anos, depois de testemunhar o Al-Shabaab matar seu pai e sua mãe, me disse: “Não quero voltar. Não posso por causa das memórias que tenho de lá”.
O trauma dos refugiados é algo similar ao transtorno de estresse pós-traumático. Imagine uma experiência terrível, em geral envolvendo morte e abuso sexual, que força você a deixar seu lar e fugir para outro país. Sua vida é desenraizada à força. O trauma causa dois tipos de dor: psicológica – flashbacks, ansiedade, pesadelos, depressão – e física – dores de cabeça, náusea, perda do apetite. Retornar é um gatilho para esses sentimentos, no entanto, atualmente, ficar no Quênia também.
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Fonte: VICE