Capital regional do Curdistão foi invadida por iraquianos que abandonaram seus lares por medo das lutas entre militantes sunitas do EIIL e governo. Porém muitos refugiados já estão voltando para casa.
O Parque Shar, no centro de Erbil, capital regional do Curdistão iraquiano, é construído em torno de uma série de pequenas piscinas e fontes que, nas noites quentes de verão, proporcionam um jorro d’água refrescante e bem-vindo. Situado no sopé da histórica Cidadela de Erbil e em frente ao bazar principal, o local é bastante popular entre turistas e moradores.
Do início da tarde até tarde da noite, os comerciantes expõem à margem do parquemasbahas(espécie de terço de contas para oração) e pequenos objetos para venda; os homens se reúnem nas casas de chá ao redor; nas movimentadas quitandas de kebabao longo das calçadas as pessoas jantam.
Na noite quente desta segunda-feira (16/06), o parque está mais movimentado que nunca, pois dezenas de famílias se juntam à multidão noturna.
“Pode-se ver que essas pessoas não são daqui”, comenta o morador Zardar Mohammed. “As famílias curdas não vêm aqui à noite, elas vão para outros lugares. Normalmente, à noite só se encontram homens nesta área. Mas os de fora sempre estão interessados em ver a cidadela e o bazar.”
A presença de tantos homens, mulheres e crianças gera uma atmosfera mais festiva. Mas esses não são turistas comuns: em sua maioria são desalojados iraquianos, em fuga da violência que devasta grande parte do resto do país.
À espera do pior
Tão logo a cidade de Mosul, no norte iraquiano, caiu em poder dos militantes do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL), em 9 de junho, viu-se um afluxo dos moradores em direção à região do Curdistão, temerosos de que o governo iraquiano lançasse um bombardeio contra os extremistas islâmicos.
Embora ainda não tenha ocorrido uma retaliação por parte de Bagdá, centenas de milhares de deslocados internos têm invadido o Curdistão: cerca de 320 mil de Mosul e um número ainda não confirmado de Samarra, Tikrit e outras áreas também tomadas pelos extremistas. As longas filas de carros esperando para passar pelo posto de controle de Kazir, entre Erbil e Mosul, têm sido uma constante desde a noite de segunda-feira. Outros refugiados atravessam a pé, carregando crianças pequenas, carregados de bolsas e pertences.
No segundo dia do influxo dos desalojados, um homem que se identificou como Bashar esperava pacientemente no posto de controle, em seu utilitário branco, acompanhado da esposa e duas crianças pequenas.
“Estou esperando o pior. Bombardeios e outras coisas. Meus filhos estão com medo, estão com medo de tudo. No ano passado, uma explosão de bomba atingiu o nosso carro, e as pernas da minha mulher ficaram feridas, então estamos com medo.”
Fuga – um encargo financeiro
Algumas famílias se dirigem para o campo de refugiados improvisado, montado às pressas pelo governo regional do Curdistão e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Mas muitos se hospedam em hotéis, com amigos ou familiares que já viviam na região do Curdistão.
Uma família que saiu para passear no Parque Shar vem de Samarra, na província de Salahaddine, que durante vários dias foi palco de batalhas sangrentas entre os combatentes do EIIL e as forças iraquianas.
“A situação está muito ruim em Samarra”, explicou o pai de família, preferindo manter o anonimato. “Havia greves por toda a cidade, então, uns dias atrás, decidimos partir.” Vieram com ele para Erbil sua esposa, a mãe, a tia, uma prima e oito crianças entre 18 meses e nove anos de idade.
Impecavelmente vestidas e bem comportadas, elas mais parecem turistas numa excursão de feriado do que exilados fugindo por suas vidas. A mãe desembrulha chocolates para elas, que escutam pacientemente o pai descrever a situação.
“As pessoas têm sido muito boas para nós em Erbil. Somos seus hóspedes e elas têm sido muito hospitaleiras”, elogia. “Eu não posso me dar ao luxo de alugar uma casa e tenho filhos demais para ficar num hotel, por isso estamos em casa de amigos.” Mas, apesar da acomodação gratuita, eles provavelmente terão de retornar em breve para Samarra.
“Não sei quanto tempo estaremos por aqui, mas acho que vou ter de voltar logo. Erbil é muito cara e eu sou apenas um trabalhador normal, um pintor. Não sou um funcionário do governo, então não tenho salário fixo. Se eu não trabalhar, não tenho renda. Mas não vou pegar qualquer trabalho, eu tenho a minha dignidade.”
O pai de família conta que cerca de metade da população de Samarra fugiu. Os que ficaram, foi por não ter condições financeiras de deixar a cidade.
Sharia em Mosul
Em Mosul, as lutas pararam e a ONU relata cautelosamente que algumas famílias estão retornando para casa. Os habitantes da cidade também informam que a vida lentamente volta ao normal, ainda que sob a imposição da sharia (lei tradicional islâmica) pelos militantes. Alguns chegam a afirmar que as coisas estão melhor agora do que com a presença do Exército iraquiano.
“Eles removeram todas as barricadas de segurança do centro da cidade, de forma que as pessoas agora podem andar livremente pelas ruas”, relatou de Mosul o jornalista Mohammed Umar Al-Qasi, no último sábado, por telefone.
“Eu peguei um táxi do aeroporto para minha casa ontem. Quando o Exército estava aqui, isso levava meia hora, porque eu tinha de passar por sete postos de controle. Agora, só preciso de cinco minutos. Havia dois postos de controle, mas eles só perguntaram de onde eu vinha e para onde estava indo, e não pediram para ver a minha documentação.”
Medo da milícia xiita
A cidade de Samarra, por outro lado, ainda é palco de confrontos entre militantes islâmicos e forças iraquianas, e receia-se um bombardeio aéreo pelos militares iraquianos. Boa parte da população predominantemente sunita da cidade também teme represálias dos milicianos xiitas, que estão convergindo para Samarra a fim de apoiar o Exército iraquiano e proteger a mesquita Al-Askari – um dos mais sagrados santuários xiitas no Iraque.
A milícia xiita é uma grande preocupação para esta família em particular. “Eles mataram três membros da minha família”, diz a mãe, envolvendo-se firmemente com seu longo lenço. “Meu marido e meu filho de 18 anos foram apanhados pela milícia em Bagdá há dois anos, e desde então nunca mais os vimos.”
Por uma terrível coincidência, sua filha foi morta no mesmo dia em Samarra, quando um foguete atingiu o edifício onde se encontrava, matando outras dez pessoas. Quando a conversa gira em torno da milícia xiita e do possível controle de Samarra por parte do EIIL, a mulher fica cada vez mais agitada. “Está sendo filmado? Vai sair em árabe?, pergunta, apressando o filho para finalizar a conversa e ir embora.
“Claro que estamos com medo”, admite o rapaz, ao partir. “Mas vamos ficar em Samarra. Para onde mais podemos ir?” E, com isso, diz educadamente “boa noite” e conduz a família de volta ao parque.