“Um refugiado não tem nada”

quinta-feira, junho 26, 2014

A integração de alguém que é forçado a deslocar-se e procurar asilo num país estranho ou longínquo “não se faz meramente com o reconhecimento do estatuto de refugiado”. Face às “situações de desespero e carência”, que afectam hoje mais de 50 milhões de migrantes forçados em todo o mundo, “os países têm de criar estruturas” para além dos subsídios e apoios, defendeu, numa conferência que assinalou em Lisboa o Dia Mundial do Refugiado, o Senior Policy Officer do ACNUR em Roma

POR GABRIELA COSTA

urgente

Pela primeira vez após a Segunda Guerra Mundial, o número de refugiados, requerentes de asilo e deslocados internos em todo o mundo ultrapassou 50 milhões de pessoas. Os dados, revelados pela Organização das Nações Unidas no Dia Mundial do Refugiado – assinalado no passado dia 20 de Junho – ditam um aumento de seis milhões de deslocações forçadas, entre os 45,2 milhões de cidadãos registados como migrantes forçados em 2012 e os 51,2 milhões registados no final de 2013.

Hoje, e no total, existem no planeta 16,7 milhões de refugiados e 33,3 milhões de deslocados. Só no ano passado, 1,1 milhão de pessoas apresentaram pedidos de asilo, incluindo 25 300 crianças menores, sem acompanhamento, que apresentaram pedidos de asilo e alojamento em mais de 77 países, conclui o Relatório Anual “O Custo Humano da Guerra: Tendências Mundiais” do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados  (ACNUR).

Reconhecendo que “estamos a enfrentar um enorme aumento do fenómeno da migração forçada em todo mundo”, António Guterres explicou que actualmente esta é maioritariamente provocada pela crise desde a Síria até ao Sul do Sudão. Ao contrário da ideia que se tem no Ocidente, “86% dos refugiados vivem em países em desenvolvimento”, e não nos desenvolvidos, sublinhou ainda o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados.

Em Portugal, e de acordo com o Conselho Português para os Refugiados (CPR), cerca de 500 pessoas por ano procuram protecção, um número bastante inferior à média europeia (860 pedidos por milhão de habitantes na UE-28, em 2013).

No ano passado, os Estados-membros da União Europeia concederam asilo a mais de 135 mil pessoas, segundo dados do Eurostat. Portugal recebeu aproximadamente 0,1% desses pedidos de asilo, acolhendo 135 pessoas. O número de requerimentos aprovados aumentou em quase 20 mil, de acordo com o gabinete oficial de estatísticas da EU, o que pode ser justificado pelo conflito armado na Síria, de onde provêem um quarto dos refugiados em 2013. O nosso país acolheu 15 refugiados sírios.

A seguir aos sírios, os cidadãos com mais pedidos de asilo requeridos à União Europeia foram, respectivamente, os afegãos e os somalis. Por cá, o maior número de pedidos chegou de residentes da Guiné Conacri, seguida da Síria e da República Democrática do Congo.

“A integração começa na língua”

Também por cá, mas no âmbito da comemoração do dia Mundial do Refugiado (ver Caixa), as oportunidades e os desafios da empregabilidade dos refugiados estiveram em análise numa conferência promovida em Lisboa pelas entidades signatárias do Protocolo de Cooperação em matéria de Apoio a Refugiados e Requerentes de Asilo, o qual visa uma política integrada de intervenção: o CPR, o Instituto da Segurança Social, o Instituto do Emprego e Formação Profissional, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o Alto Comissariado para as Migrações e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

O Encontro reuniu altos representantes e especialistas de todos estes organismos e de diversas outras entidades que actuam na área das migrações, incluindo o Senior Policy Officer do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados em Roma, Beat Schuler, num debate alargado sobre políticas integradas para os refugiados e protecção internacional em Portugal, com destaque para medidas activas de formação e emprego, com vista à inserção socioprofissional destes cidadãos.

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Para o Senior Policy Officer do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) em Roma, a integração de alguém que é forçado a deslocar-se da sua terra e procurar asilo num país estranho ou longínquo não se faz meramente com o reconhecimento do seu estatuto de refugiado. Dar a estas pessoas a oportunidade de trabalharem e estudarem no país de acolhimento é “uma questão básica de dignidade humana”.

Face a “situações de desespero e carência”, que afectam milhões de migrantes forçados em todo o mundo, “os países têm de criar estruturas”, que vão para além dos subsídios e apoios com que vive, nos primeiros tempos após o acolhimento, quem enfrenta esta realidade. Sob pena de aumentar o risco de estas pessoas “caírem no mercado paralelo, o que não é uma alternativa aceitável”, defende Beat Schuler.

Aprender a língua do país de acolhimento é o primeiro passo para a integração, garante, mas a certificação das aptidões e conhecimentos do refugiado é também essencial para a sua inserção no mercado de trabalho, depois de ultrapassados os primeiros obstáculos com a obtenção do estatuto legal no país anfitrião. É “todo um processo de integração que não é automático”.

Ao contrário de um emigrante legal, que chega ao seu destino geralmente com ‘o terreno’ minimamente preparado, com alguma estadia combinada, por vezes já com um contrato de trabalho, “um refugiado não tem nada. E muitas vezes sofre o trauma de ter deixado a família para trás, no país de origem. É uma fase muito difícil na vida de alguém”, em que é preciso “começar de novo”, recorda Schuler.

E neste começar de novo erguem-se novas barreiras, desde logo as da discriminação, acentuada pela crise económica global, na opinião do alto responsável em Roma.

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“É preciso envolver as empresas”

Para o ACNUR, “a expectativa é que [estes cidadãos] encontrem mais apoios do que obstáculos, à chegada” a um destino de acolhimento, sublinha, e para tanto “procuramos um equilíbrio” ao nível das directivas da EU, no que diz respeito ao “formato em que um refugiado pode trabalhar num país”, diz Beat Schuler. Primordial, para a sua integração, é um “ambiente legal acolhedor e uma estratégia concertada entre todos os que trabalham nos programas de acolhimento”. Mas também que se ouça a voz dos refugiados, relativamente ao que pensam sobre as estratégias de acolhimento, conclui ainda.

Considerando que “Portugal é um caso muito interessante no que respeita à articulação entre as entidades envolvidas” no processo, graças ao protocolo de cooperação conjunta estabelecido com vista a uma política integrada de intervenção, o Senior Policy Officer do ACNUR em Roma afirma que é preciso “envolver outras partes da sociedade”, como as empresas.

Apesar dos desafios da crise, deve-se sempre tentar encontrar um “trabalho ideal” para cada refugiado, “sem qualquer discriminação em função da sua raça, religião, orientação sexual, etc”. Pelo que os organismos que promovem e geram emprego “devem considerar as aptidões que cada pessoa tem”. Na perspectiva de Beat Schuler, uma verdadeira estratégia nacional é abrangente na definição que faz do modo como o país quer acolher os seus refugiados, implicando “não só instituições públicas ou da sociedade civil (ao nível das agências que actuam nesta área) mas também as empresas e os cidadãos”.

Em suma, e no actual contexto socioeconómico – ponderado ao longo de todo o discurso do representante do ACNUR em Roma -, face à realidade global das políticas e práticas de acolhimento e integração de refugiados o Alto Comissariado recomenda:

. Fortes medidas legais que proíbam a sua discriminação;

. Um esforço concertado para encontrar soluções que abram o mercado de trabalho aos refugiados;

. Soluções de empowerment dos refugiados no país de acolhimento, envolvendo-os a participar na estratégia nacional para a sua integração;

. Reconhecimento das qualificações que trazem dos países de origem e criação de oportunidades de educação e formação em novas competências;

. Reforço do sistema de protecção internacional através de redes de integração de refugiados.

Protecção internacional harmonizada

A Lei 26/2014, de 5 de Maio, que procede à primeira alteração à Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho (a qual estabelece as condições de concessão de asilo ou protecção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de protecção subsidiária), entra em vigor a 5 de Julho. Transpondo as Directivas do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu nºs 2011/95/UE, 2013/32/UE e 2013/33/UE, a nova Lei de Asilo harmoniza estatutos e procedimentos para a concessão de protecção internacional, e para o acolhimento de requerentes dessa mesma protecção, promovendo uma cooperação mais concertada para a integração de refugiados.

Em declarações ao VER, Teresa Tito de Morais, presidente da Direcção do CPR, antevê os efeitos da construção de um sistema europeu comum de asilo pelos Estados membros da União Europeia, o qual é, neste momento, “um processo consolidado e incontornável”, na sua opinião.

Como explica, “não sendo fácil atingir os consensos necessários entre os Estados membros, a referida harmonização tem representado um longo processo na construção de uma abordagem comum entre países com realidades e contextos migratórios diferentes, com o objectivo de estabelecer procedimentos de asilo justos e eficazes, e garantir um acolhimento digno àqueles que procuram protecção na Europa”. A primeira alteração à Lei 27/2008, de 30 de Junho “surge, em consequência, da obrigatoriedade de transposição de directivas e regulamentos basilares para a construção do sistema europeu comum de asilo, objectivo fundamental da UE na área de liberdade, segurança e justiça”.

O CPR, que acumula experiência nesta matéria há mais de 22 anos, e reconhecendo a relevância que este sistema comum tem na vida dos requerentes e beneficiários de protecção internacional em Portugal, esteve envolvido no processo legislativo, após a apresentação do projecto-lei em Conselho de Ministros. O objectivo foi “assegurar a integridade da transposição das directivas, mantendo os aspectos positivos e inovadores da Lei 27/2008, de 30 de Junho, e procedendo, ao mesmo tempo, à clarificação de conceitos e a reajustamentos de natureza mais operacional que se impunham à luz da prática da lei vigente”, esclarece Teresa Tito de Morais.

Analisando as principais vantagens e desvantagens da nova Lei de Asilo, a presidente da Direcção do CPR considera positivo que, para além da clarificação de conceitos como alternativa interna de fuga e agentes de perseguição, tenha ocorrido um alargamento da validade dos documentos emitidos aos requerentes de protecção (de 4 para 6 meses), bem como da validade da Autorização de Residência por Razões Humanitárias emitidas aos beneficiários de protecção subsidiária (de 2 para 3 anos); que tenha sido alargado o prazo da primeira fase de procedimento relativamente aos pedidos apresentados em postos de fronteira (de 5 para 7 dias), bem como o prazo para interposição de impugnação judicial nos casos de não admissão (de 2 para 4 dias) – consubstanciando-se assim prazos processuais mais realistas; que se mantenha como regra o efeito suspensivo da impugnação jurisdicional, em 1ª e 2ª instância; e que seja dada atenção particular à situação dos requerentes de protecção menores não acompanhados, bem como à identificação de requerentes particularmente vulneráveis;

Quanto a aspectos negativos, Tito de Morais alerta para duas consequências da legislação que começará a produzir efeitos já a partir do próximo mês: ainda que a regra prevista seja a de não detenção dos requerentes de protecção internacional, “a verdade é que a lei opera um alargamento significativo das situações em que um requerente de protecção internacional pode ser colocado ou mantido em detenção”; e ainda que a presente lei proceda ao alargamento dos prazo processuais consagrados na lei anterior, “os mesmos continuam a ser demasiado exíguos e a constituir, por essa via, um obstáculo a uma análise individualizada da necessidade de protecção internacional dos requerentes e ao seu direito a uma tutela jurisdicional efectiva”.

Após intervenção no procedimento legislativo, que culminou na aprovação da presente lei, o CPR mantém-se “expectante relativamente à forma como a mesma será interpretada e implementada pelas autoridades, o que se revelará determinante no balanço que caberá fazer sobre a aplicação da mesma”, remata a presidente da organização.

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Uma integração estruturada e participativa

Face à importância de uma política nacional para os refugiados efectivamente integrada, que impacto  tem o protocolo conjunto estabelecido entre as diversas entidades que actuam no processo de acolhimento e integração?

O CPR considera que esta parceria é importante para uma política de integração dos refugiados em Portugal, “estruturada e participativa”. Todavia, e como sublinha Teresa Tito de Morais, este protocolo constitui “mais um passo, num longo caminho iniciado e desbravado pelo CPR”, desde a sua criação: “existe um trabalho anterior que desenvolvemos ao longo dos anos, em prol dos refugiados, junto das entidades que agora surgem como parceiros, dos potenciais empregadores e das autarquias, que não pode ser desvalorizado”.

Para além de “constituir um processo” com “impacto positivo na construção de uma política de integração em Portugal”, este protocolo constitui igualmente “uma aprendizagem em termos de parceria, que se deseja transparente, eficaz e continuada”, defende a responsável máxima da organização parceira operacional do ACNUR em Portugal.

Como explica, também em declarações ao VER, a Alta Comissária para as Migrações, Rosário Farmhouse, numa primeira fase o trabalho que foi desenvolvido através deste protocolo conjunto “concentrou-se em criar um efectivo envolvimento das diferentes entidades na integração dos refugiados, com um enfoque na análise caso a caso de cada refugiado e, sempre que possível, com a integração dos refugiados em distritos onde pudessem ter um apoio mais directo e efectivo”.

Por parte do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), um dos parceiros do projecto, “a aposta foi sobretudo na formação dos colaboradores (dos CNAI – Centros Nacionais de Apoio ao Imigrante e CLAII – Centros Locais de Apoio à Integração de Imigrantes), atendendo a que “a matéria de asilo e os refugiados não são, por excelência, os destinatários da missão do ACM”. Foram também disponibilizados os serviços do CNAI e do Serviço de Tradução Telefónica (STT).

Reconhecendo o impacto desta articulação entre diferentes entidades na melhoria do processo de acolhimento e integração de refugiados em Portugal, Rosário Farmhouse sublinha que “seria importante a integração no protocolo dos ministérios da Educação e da Saúde”.

Lisbon in Blue: somos parte da história

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O Dia Mundial do Refugiado assinalou-se em Portugal com iniciativas que incluíram a iluminação, com a cor azul da ONU e do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), de monumentos e edifícios da Grande Lisboa como o Cristo-Rei, a Praça do Município, a Estátua de D. José na Praça do Comércio, e o Pelourinho de Oeiras, nas noites de 19 e 20 de Junho. A exemplo de diversos locais de referência em cidades de todo o mundo, o objectivo foi homenagear a coragem, determinação e resiliência dos refugiados, “numa altura em que as deslocações forçadas atingem níveis alarmantes”.

No dia 20, e depois da conferência “As oportunidades e Desafios da Empregabilidade dos Refugiados em Portugal”, teve lugar no Centro de Acolhimento para Refugiados da Bobadela (do CPR) um Sarau Cultural, com “Fragmentos de Teatro” pelo Grupo RefugiActo, exercícios de expressão dramática, “A aula de Português” (PARTIS) e um espectáculo musical.

Ainda no âmbito deste Dia Mundial, e associando-se ao ACNUR, o CPR apela a todas as pessoas que partilhem histórias de refugiados, de familiares, amigos ou simplesmente de casos conhecidos de vítimas de perseguições, da guerra e das sistemáticas violações dos direitos humanos. A iniciativa reúne testemunhos de quem procura protecção internacional, naquela que é “a história mais urgente dos nossos tempos”.

Fonte: Portal Ver

 


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