Os indivíduos que abandonaram os seus países de origem devido à instabilidade política em busca de abrigo em Moçambique, em vez de abrigo, encontraram fome e miséria – que o digam os mais de 8.400 cidadãos, maioritariamente de nacionalidade congolesa, “aquartelados” no Centro de Refugiados de Maratane, a 17 quilómetros da cidade de Nampula.
Desamparados pelo Governo e à mercê de promessas não cumpridas, eles vivem em condições extremamente desumanas. Do rosário das inquietações, destacam-se a irregularidade no fornecimento de produtos alimentares, problemas relacionados com a assistência médica e medicamentosa, a formação profissional e a educação. As mulheres são as principais vítimas, pois, para sobreviverem, têm de se prostituir.
Quando Papson Komba abandonou o seu país, a República Democrática do Congo, devido ao conflito armado, com destino a Moçambique, esperava encontrar um abrigo. Ter uma condição de vida melhor era o sonho que povoava o seu imaginário. Porém, ao invés de refúgio e uma oportunidade para recomeçar a vida, o cidadão congolês se deu conta de que a grande batalha não foi escapar das balas de um fuzil. “Essa, na verdade, foi apenas uma etapa”, diz e acrescenta: “Tenho consciência de que estamos na terra de dono, e agradeço o acolhimento”.
Pai de três filhos, dois dos quais nascidos no Centro de Refugiados de Maratane, Komba dedica-se à produção agrícola e a pequenos negócios. Ele afirma que, não obstante as deploráveis condições por que passa, se sente confortável no território moçambicano e não pensa em regressar à sua terra natal. “Não estamos a exigir mais do que nos podem oferecer, apenas queremos o mínimo para sobrevivermos neste local. O que mais nos inquieta é a problemática da falta de medicamentos, uma ambulância para a transferência de doentes em estado grave e a falta de médico”, diz.
John Sonda é também de nacionalidade congolesa e chegou a Maratane há mais de 10 anos. Ele diz que a falta de emprego constitui um dos grandes constrangimentos para os jovens. No seu entender, aquele centro de refugiados é interdito à prosperidade e, na maior parte do tempo, ele fica a ver o dia a passar. “Não há nada para fazer por aqui. Quando amanhece, o dia resume-se a ficar sentado debaixo duma árvore ou a dar umas voltas pelo centro, pois dependemos exclusivamente de donativos, o que não é muito bom”, garante.
Apesar da vida dura que se vive em Maratane, os casos de mortes devido à fome passou para a história, uma vez que grande parte dos refugiados tem vindo a dedicar-se à produção de hortícolas e fornece os principais mercados da cidade de Nampula. “Num centro que acolhe centenas de famílias é aceitável haver dificuldades, mas nem tudo está mal. Já temos acesso a água potável”, afirma.
À semelhança de Sonda, o somali Adir vive ao deus-dará. Ele, a sua esposa e os cinco filhos dividem uma casa de um só cómodo com uma só cama, feita de pau-a-pique. A cozinha resume-se a umas estacas de madeira do lado de fora da habitação. “Não temos tido apoio todos os dias. Uma vez a outra, recebemos feijão, farinha de milho e óleo”, conta. O feijão é a principal dieta no centro.
Quase todas as famílias alimentam-se deste grão altamente nutritivo ao almoço e ao jantar. Ao mata-bicho, alguns agregados familiares consomem pão, mandioca ou batata-doce. Mas, nalguns lares, como o de Adir, tal refeição é uma raridade. Diga-se, em abono da verdade, que não é somente a falta de alimentos que preocupa os moradores. A desnutrição é também um problema de proporções gigantescas. Crianças com os olhos fundos, cabeça grande e braços finos são imagens mais comuns em Maratane.
Um centro, mil e um problemas
O Centro de Refugiados de Maratene localiza-se a aproximadamente 17 quilómetros da cidade de Nampula e dispõe de cinco bairros. Grande parte das famílias que ali vivem provém dos países dos Grandes Lagos, e uma minoria é oriunda da Somália e da Etiópia, para além da população local.
Quando se circula por Maratane, percebe-se que as condições de vida definham a cada nascer do sol. O quotidiano de grande parte dos habitantes é caracterizado pelo consumo de álcool, uma vez que não há nada para fazer. A monotonia entranha-se no quotidiano e embacia as perspectivas de um futuro melhor para os jovens e as crianças que nasceram no centro. Paira, na verdade, um sentimento de abandono.
As condições de higiene são extremamente precárias, porém, para os mais de 8.400 cidadãos de diversas nacionalidades que, por vários motivos, com destaque para a instabilidade política que se traduziu em guerra e violência religiosa e étnica que os seus países registam, escolheram Moçambique para recomeçar a vida, parece não ser problema. Na verdade, as principais inquietações têm a ver com o que comer no dia seguinte.
Os refugiados queixam-se de problemas relacionados com a irregularidade no fornecimento de produtos alimentares que se circunscreve, basicamente, em sete quilogramas de farinha de milho, meio litro de óleo, meio quilo de feijão, uma barra de sabão e alguns gramas de sal, para consumo mensal. Os refugiados consideram insuficientes as quantidades, sobretudo para suster um agregado familiar no período em referência.
Juma Wajuma, um dos representantes da comunidade congolesa, diz que o processo de distribuição de produtos pela administração do centro, acção coordenada pelo Instituto Nacional de Apoio aos Refugiados (INAR) e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), não tem sido constante, o que obriga dezenas de pessoas a abondarem o local em busca de melhores condições na cidade de Nampula. As mulheres, por exemplo, abraçam a prostituição e os homens dedicam-se a actos ilícitos, como é o caso de assaltos e burlas.
A falta de formação profissional é também uma das principais dificuldades por que os refugiados passam. Segundo Wajuma que reside em Maratane há mais de cinco anos, o Centro de Formação, sob gestão do Instituto Nacional de Emprego e Formação Profissional (INEFP), ministra apenas o curso de carpintaria. “Não há mercado para essa profissão e também não dispomos de meios de trabalho para iniciar a actividade”, diz Wajuma.
O acesso à educação é uma miragem para centenas de crianças em idade escolar. Um número não especificado de jovens frequenta o ensino secundário geral e técnico na cidade de Nampula, e estima-se que 300 alunos foram obrigados a abandonar as aulas no presente ano lectivo, devido ao corte do subsídio no valor de 300 meticais mensais que cada estudante recebia. O montante era destinado à aquisição de material didáctico, além de custear o transporte de Maratane a Nampula.
O centro conta com uma escola primária completa, mas, após a conclusão da 7ª classe, os estudantes vêem-se forçados a ficar em casa, uma vez que não existe naquela região um estabelecimento de ensino secundário para prosseguir os estudos. Além disso, o representante da comunidade congolesa questiona a qualidade do processo de ensino e aprendizagem, pois os estudantes concluem o nível primário sem saber ler e, muito menos, escrever o seu próprio nome. Devido a esses factores, os jovens envolvem-se no consumo de drogas, bebidas alcoólicas, na prostituição infantil e em casamentos prematuros.
O descontentamento das comunidades que se encontram em Maratane estende-se, igualmente, aos alegados actos de criminalidade protagonizados por indivíduos desconhecidos, havendo suspeitas de que alguns refugiados estejam envolvidos nessas práticas devido à fome por que passam.
A título de exemplo, nos primeiros três meses do ano em curso, pelo menos duas pessoas, um burundês e outro congolês, perderam a vida por esfaqueamento e os autores do crime apoderaram-se dos seus bens, além de assaltos a residências ainda não esclarecidos pela Polícia da República de Moçambique (PRM).
Os refugiados afirmaram que, no âmbito da produção agrícola referente à campanha 2013/2014, o sector da Agricultura a nível da província de Nampula fez a distribuição de adubos depois das chuvas abrandarem, facto que comprometeu sobremaneira a produtividade. De referir que Maratane é uma região com forte potencial em produção de hortícolas.
Refugiados abandonam Maratane
Antigamente, a entrada e a saída de refugiados do centro de Maratane era velada por uma forte corrente de segurança. Presentemente, a situação mudou. Alguns indivíduos já começam a abandonar os seus abrigos à procura de melhores condições de vida.
A cidade de Nampula é o destino. Dados fornecidos ao @Verdade em Maratane dão conta de que ainda este ano um grupo constituído por seis raparigas, com idades compreendidas entre os 19 e 21 anos, de nacionalidade congolesa, abandonou o centro, passando a viver longe das suas respectivas famílias, algures na cidade de Nampula. Nesta urbe, durante o período nocturno, as jovens prostituem-se para sobreviverem.
Somalis e Etíopes usam Maratane como centro de trânsito
Isabel Marques, representante do ACNUR em Moçambique, confirmou ao @Verdade que mais de oito mil cidadãos, principalmente somalis e etíopes que se encontravam até finais do ano de 2012 no Centro de Refugiados de Maratane, teriam chegado àquela parcela do país, através da fronteira de Negunamo, em Cabo Delgado, e abandonaram o local em circunstâncias não esclarecidas.
Acredita-se que os indivíduos se fizeram passar por requerentes de asilo político como forma de evitar que fossem tratados como cidadãos ilegais no território nacional. Grande parte dos supostos refugiados etíopes e somalis abrigou-se no local durante uma a duas semanas apenas e rumou a outros destinos, como é o caso da vizinha África de Sul.
Presentemente, em Maratane residem 300 cidadãos etíopes e somalis, dos mais de oito mil refugiados que se encontravam abrigados até finais de 2012. Dados da PRM em Nampula indicam que, em 2012, mais de cinco mil cidadãos, entre etíopes e somalis, transportados em viaturas alugadas, foram neutralizados, quando tentavam sair de Maratane e outros foram capturados na altura em que se deslocavam às regiões centro e norte do país.
Governo provincial sem condições financeiras
Tomaz Nhane, director provincial de Finanças em Nampula, reconheceu a legitimidade das inquietações apresentadas pelos refugiados, mas afirma que algumas situações ultrapassam as capacidades locais.
Para minimizar o problema, aquele responsável refere que o executivo de Cidália Chaúque Oliveira tem vindo a recrutar alguns cidadãos daqueles países que tenham qualificações académicas para ocuparem vagas em diversos sectores da Função Pública.“Outros têm tido acesso ao crédito bancário para desenvolverem várias actividades económicas”, diz.
ACNUR sem orçamento para responder à demanda
A representante do ANCUR em Moçambique afirma que o seu organismo aloca, anualmente, cerca de um milhão e quinhentos mil dólares norte-americanos para a assistência dos refugiados em todo país, e em Maratane em particular, valor que não é suficiente para suprir todas as necessidades daquele grupo social.
Marques diz que os apoios oferecidos aos refugiados em Maratane resultam de doações de várias organizações, razão pela qual as ofertas só permitam assistir a necessidades elementares, nomeadamente alimentação, saúde, educação, formação profissional, agricultura e acção social.
Pedidos de asilo político encalhados há cinco anos
Outra inquietação manifestada pelos refugiados prende-se com a demora na resposta aos requerimentos submetidos para a obtenção da condição de refugiados. Alguns pedidos encontram-se engavetados há mais de cinco anos.
A representante do ACNUR em Moçambique reconheceu tal facto e diz que, com vista a ultrapassar este impasse, uma comissão interministerial agendou uma série de encontros que vai culminar com a produção de algumas recomendações a serem dirigidas ao Ministério do Interior.
“Um requerente de asilo político é um residente legal. Tendo o documento que confere o estatuto de refugiado é mais seguro, uma vez que pode definir o seu futuro”, afirma Isabel Marques. Dados estatísticos indicam que dos 15.990 refugiados que se encontram no país, pelo menos 8.400 residem no Centro de Refugiados de Maratane, na província de Nampula.
Não há falta de medicamentos
De acordo com o representante da comunidade congolesa, Juma Wajuma, um das inquietações do centro tem a ver com o crónico problema de falta de medicamentos no posto de saúde local, a insuficiência de pessoal especializado para o tratamento de certas doenças, e a falta de ambulância para a transferência de doentes em estado grave. Como consequência disso, nos meses de Janeiro e Fevereiro, pelo menos três refugiados que padeciam de malária perderam a vida naquela unidade sanitária por eles não lhes ter sido administrados fármacos, alegadamente porque a unidade sanitária não os possuía.
Orlando Alves, um dos técnicos afectos ao Posto de Saúde de Maratane, desdramatiza as reclamações apresentadas pela população de Maratane no que tange à falta de medicamentos, mas reconhece que a unidade sanitária tem recebido poucas quantidades de fármacos.
“Em 2014, os Serviços de Acção Social procederam à disponibilização de leite e papas enriquecidas a crianças com problemas de desnutrição crónica, e estes bens estão a produzir efeitos positivos, com a redução de número desses casos”, afirma Alves, acrescentando que as mortes por fome registadas nos anos passados se deviam à falta de domínio no processo de preparação de alimentos, sobretudo nas comunidades etíopes e somalis, cuja dieta é diferente da dos moçambicanos.
Segundo o nosso interlocutor, a falta de ambulância deveu-se a um acidente que esta sofreu em Fevereiro último, quando transferia um doente grave para o Hospital Central de Nampula, estando, nesse momento, em reparação.
O Posto de Saúde de Maratane assiste, em média diária, cerca de 100 pacientes, sendo as principais patologias a malária, o VIH/SIDA, a malnutrição e os problemas respiratórios. Refira-se que a unidade sanitária dispõe de serviços de internamento com um total de 12 camas, uma pediatria, uma maternidade e um banco de socorros.
Fonte: Verdade