Eles perderam tudo, menos a vida. Nesse Iraque que virou um inferno sobre a terra nos últimos onze anos, os cristãos de Mossul estão vivos, quase aliviados de terem sido condenados à errância e ao exílio. Na igreja siríaca ortodoxa Oum Nour (“Mãe de Luz”) de Erbil, 18 famílias se amontoam no subsolo, que virou um campo de refugiados.
Todos contam a mesma história sobre o Estado Islâmico, que proclamou um “califado” nos territórios conquistados no Iraque e na Síria. Eles relatam que não se trata de um caos, mas sim de uma organização fria e implacável. “Durante três semanas, os homens de Da’esh não se preocuparam conosco. Eles só atacavam os soldados, policiais e oficiais xiitas. Nós vivíamos discretamente”, conta um homem. “Não tínhamos liberdade, mas tudo bem. Nós, as mulheres, usávamos vestidos longos e hijabs para passar despercebidas”, diz sua esposa. “Alguns deles diziam que nós estávamos protegidas”, conta Reham, uma mãe de família. “Eles pareciam quase pacíficos.”
“N” vermelho
Antes de cair nas mãos dos jihadistas, Mossul abrigava entre 5 mil e 25 mil cristãos. Muitos fugiram assim que a cidade foi conquistada pelo Estado Islâmico, no dia 10 de junho. Surpreendentemente, a rota para o Curdistão permanecia aberta, apesar dos combates esporádicos entre jihadistas e peshmergas curdos. Até o ônibus que faz a rota Mossul-Erbil continuava em funcionamento.
A situação mudou no dia 16 de julho. À noite, os jihadistas visitaram cada família cristã. “Eles desenharam um ‘N’ dentro de um círculo, pintado de vermelho, em cada casa”, contam os refugiados. “N” de “nassarah”, nome usado para designar os cristãos no Corão. “Eles pediram o número de telefone de cada família e disseram para não hesitarem em ligar para eles caso houvesse algum problema”, conta um senhor. “Achei que fossem nos proteger”.
Já o clérigo sabia o que devia esperar. O bispado de Mossul recusou uma convocação para uma reunião com o Estado Islâmico, uma vez que não queria colaborar com uma transferência forçada da população. “Nós soubemos que os cristãos iam ser expulsos”, confirma o bispo de Erbil, Dom Bashar Warda. “Não houve nenhuma negociação. De qualquer forma, essas pessoas de Da’esh não negociam. Eles dão ordens e você precisa obedecer”.
Na noite seguinte, os combatentes voltaram a passar em frente de cada casa. Quando acordaram, os cristãos viram escrito em preto, ao lado do “N” vermelho, “Propriedade do Estado Islâmico”.
Foi logo após a prece do amanhecer de sexta-feira que o anúncio foi transmitido à população, através de panfletos e dos alto-falantes das mesquitas. Os cristãos tinham até o meio-dia de sábado (19) para escolher entre se converter ao islamismo, pagar um imposto especial para não-muçulmanos, ou irem embora. A última opção, em caso de desobediência, seria “perecer pela espada”.
Fuga
“Nós amontoamos nossos pertences nos carros”, conta Reham. “Fui embora com meu marido e nossos dois filhos. Ao contrário de outros que passaram pelos postos de controle mais tarde, eles não pegaram nosso carro, mas pegaram dinheiro e as bagagens. Eles pegaram até a mamadeira do meu filho caçula”.
O roubo é sistemático. Os combatentes recebem ordens: absolutamente nada, além das roupas do corpo, é deixado aos exilados. “Eles pegaram o dinheiro, as joias, os telefones, e até mesmo as bolsas de roupas e comida”, conta um homem. O único objetivo que parece escapar de uma lógica é o carro, que às vezes é roubado, às vezes não. Famílias andaram um quilômetro para chegar até o posto de controle das forças curdas.
“Fomos um dos últimos a partir, a bordo de um mini-ônibus”, conta Samir. “Éramos doze cristãos e dez muçulmanos. No posto de controle, um combatente ordenou que os cristãos lhe dessem dinheiro, telefones e bolsas. Os muçulmanos também tinham medo. O cara que entrou no ônibus disse que devíamos ficar contentes por eles nos deixarem partir assim…”
Os cristãos de Mossul afirmam que não têm nenhuma esperança de voltar para suas casas. As autoridades curdas estão os ajudando a se instalar em Antawa, o bairro cristão de Erbil, e nos vilarejos cristãos da região. Muitos sonham com um exílio no exterior, a exemplo dos 400 mil cristãos que já foram embora do Iraque nos últimos dez anos.
“No entanto, nós vivíamos bem juntos, cristãos e muçulmanos”, conta um homem que adotou o pseudônimo de “El-Mosoli”, “o homem de Mossul”. “Voltar um dia a Mossul?”. Ele olha para o céu… a pergunta parece muito estranha, nessa época de califado. No entanto, o fato de todos exigirem anonimato talvez seja sinal de que ainda existe a esperança de voltar. “El Mosoli”, que se prepara para sair da igreja, sussurra: “que homem não tem vontade de um dia voltar a viver em sua terra?”
Fonte: A Agonia de Prometeu