Mais de um milhão de moradores do país foram desalojados neste ano
À medida que rebeldes sunitas avançavam pelo Iraque nas últimas semanas, centenas de milhares de iraquianos foram expulsos de suas casas. Para muitos, não foi a primeira vez.
Aconteceram poucos períodos de paz prolongada no Iraque nas últimas décadas, e os civis parecem viver lutando. Mais de um milhão de iraquianos foram desalojados neste ano, metade ou mais nas últimas semanas, segundo a Organização das Nações Unidas.
Para Akheel Ahmed, árabe sunita que fugiu da casa em Balad, centro do país, o medo e a incerteza vieram acompanhados pela familiaridade. Ele chegou a esse vilarejo montanhoso ao longo da fronteira iraniana poucos dias atrás com três filhos; é a segunda vez nos últimos anos que se tornou refugiado no próprio país.
Usando gestos com as mãos, Ahmed descreveu como sua cidade natal virou um campo de batalha.
- Aqui está o EIIL, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, grupo militante sunita, e aqui as milícias xiitas. Nós estamos no meio -, explica.
A seguir, ele citou os nomes dos filhos, para enfatizar a urgência do êxodo.
-Eles se chamam Omar, Othman e Asha-, todos nomes sunitas típicos, o que os transforma em alvos para as milícias xiitas que agora atuam ao lado do exército iraquiano. – Eles vão massacrá-los-.
O avanço rápido do EIIL e de outras milícias sunitas por todo o Iraque vem transformando a guerra civil na Síria e a revolta sunita daqui numa única zona de batalha. Agora, as crises humanitárias afetando os dois países estão convergindo. Milhões de sírios fugiram para o Iraque, a Jordânia, o Líbano e a Turquia e, agora, os iraquianos também estão se deslocando.
Os iraquianos sofreram uma crise enorme de refugiados depois da invasão norte-americana em 2003. Naquela época, muitos fugiram para a Síria, mas ela deixou de ser uma alternativa. Outro destino antigo para os refugiados do Iraque, a Jordânia está sofrendo para cuidar do grande número de sírios desalojados.
- A situação está chegando a um ponto crítico-, afirmou um representante da ONU, entrevistado sob a condição de anonimato em função da política oficial. – Por pior que a Síria esteja, a crise aqui se avoluma a cada dia, excedendo a capacidade do governo. Na verdade, não existe governo centralizado englobando o Iraque inteiro e, nos últimos anos, este já era relativamente fraco -.
Neste ano, a ONU pediu a doação de US$ 106 milhões para cuidar de quase 500 mil civis desalojados na província de Anbar, onde as milícias ganharam território em dezembro. Somente uma pequena porção daquele valor foi arrecadada e agora a Organização das Nações Unidas pretende pedir outros US$ 312 milhões aos doadores para encarar a nova onda de desabrigados.
Aqui nesta vila no nordeste do Iraque, as aulas foram canceladas e as salas abrigam os desalojados.
Perguntamos a um grupo de homens parados diante da escola primária, entre eles Ahmed, se algum deles foi forçado a fugir de casa mais de uma vez nessa última década de violência quase contínua.
- Sim, todos nós fomos -, respondeu um deles.
Outra escola nesta cidade também estava cheia de refugiados, muitos da província de Diyala, região muito contestada por milícias xiitas e sunitas. Um dos refugiados era Ahmed Awad, menino de nove anos cujo pai teria sido recentemente raptado diante dele por mascarados. É a segunda vez que ele foi expulso de casa.
O irmão mais velho, Dia Awad, estava parado ali perto e explicou por que eles fugiram em 2007, recitando os motivos de forma tão informal como se lesse a lista de compras do supermercado.
- Guerra sectária. Al Qaeda. Conflitos. Explodiram nossa casa -, ele contou.
Muitos dos iraquianos desalojados vieram para a região autônoma curda no norte do país. Dezenas de milhares de refugiados sírios estão espalhadas pela área, alguns deles são crianças que pedem esmolas nos semáforos da capital, Irbil. Também existem pessoas que fugiram do combate em Anbar no começo do ano.
Embora relativamente pacífica e próspera, a região se viu presa numa luta pela renda do petróleo com Bagdá, que cortou os pagamentos orçamentários ao governo curdo. O fato resultou numa crise fiscal e limitou abruptamente a capacidade da região atender o desafio dos refugiados. Os líderes curdos, embora sejam elogiados pelas portas abertas, também temem autorizar muitos árabes no território, ainda mais sendo solteiros com idade para lutar.
Há muito tempo os curdos do Iraque estão em conflito com as populações árabes pelo território e, em meio à luta presente, eles tentaram expandir o enclave autônomo e aumentar seu controle sobre ele.
- Não me deixam entrar porque sou árabe-, disse um homem, perto do ponto de controle na estrada entre Irbil e Mosul, a segunda maior cidade do Iraque, que está nas mãos das milícias.
No outro lado da região curda, perto da fronteira síria e a várias horas de carro pelas montanhas e cerrados secos, campos com barracas caindo aos pedaços foram instalados para os desalojados, muitos dos quais proveem das minorias vulneráveis do Iraque: cristãos, turcomenos e yazidis.
Em um dos campos abafados e poeirentos, onde havia comida e água suficiente, mas poucos suprimentos médicos, Semira Ali, mulher da etnia turcomena, estava sentada com sua grande família. Eles eram de Tal Afar, cidade vizinha onde aconteceram combates ferozes entre milícias sunitas e o exército. A primeira vez que fugiram foi em 2005, quando os norte-americanos bombardearam a cidade. A segunda vez aconteceu em 2006, no auge da guerra sectária do Iraque. A terceira vez, agora em junho.
Outro turcomeno, Jassim Aziz Muhammed, estava parado ali por perto e afirmou que seu povo ficou preso entre as duas seitas beligerantes. – Estamos nos meio de xiitas e do EIIL, sem saber o que está acontecendo -.
O Iraque enfrenta um futuro lúgubre, com o aparente estourar de uma guerra civil sectária e a possibilidade de sua divisão em identidades de fé ou etnia, em vez de nacionalidade. Os desalojados também encaram as mesmas divisões.
Aqui em Darbandikhan, a maioria dos desabrigados é de árabes sunitas fugindo de ataques aéreos do governo ou das milícias. Eles estão revoltados por causa das circunstâncias presentes, mas expressam ressentimentos mais profundos, arraigados na História, que deixam pouco espaço para a reconciliação entre a minoria sunita e a maioria xiita no Iraque.
Refletindo uma crença amplamente aceita entre a população sunita do país, Ahmed disse, em discordância dos fatos, que sua seita é maioria no Iraque. De muitas formas, os sunitas iraquianos nunca aceitaram a nova ordem política implantada após a invasão dos Estados Unidos, que derrubou o governo dominado por sunitas de Saddam Hussein, por meio de eleições democráticas, para as mãos xiitas.
Ele afirmou que como novo líder do Iraque – nós aceitaríamos um curdo, um cristão ou até mesmo um judeu -, mas não um xiita.
- Eles nos consideram infiéis, e nós os consideramos infiéis-, ele explicou.
Fonte: News Pânico