Sem olhos para Gaza

domingo, julho 27, 2014

A tão sonhada paz na região depende de Israel, a parte mais forte e equipada do conflito

O cessar-fogo unilateral decretado pelos israelenses seria um sinal auspicioso

O cessar-fogo unilateral decretado pelos israelenses seria um sinal auspicioso

Há tragédias inevitáveis que nos colocam diretamente diante do mistério da vida humana e de sua relação com as forças da natureza ou com a própria divindade. O terremoto de 2010 no Haiti é um exemplo dessas catástrofes inexplicáveis, para citar apenas um caso, cujos efeitos devastadores eu pude ver mais de perto. Há, também, convulsões político-sociais, como as provocadas por movimentos como o ISIL (recuso-me a usar a outra sigla, que coincide com o nome da deusa egípcia, símbolo de fertilidade e, portanto, de vida), que buscam inspiração em crenças que remontam a um período obscuro da História, convenientemente distorcidas para justificar o culto à violência e ao terror sectário. Diante desses tipos de tragédia, que desafiam nossa capacidade de entendimento, há uma perplexidade natural, que inibe a ação e coloca em dúvida a eficácia de qualquer solução.

Mas há também as tragédias evitáveis ou aquelas cujo estancamento está ao alcance dos homens, principalmente dos líderes políticos. Esse, a meu ver, é o caso de Gaza. A matança desenfreada a que assistimos neste momento é, em larga medida, repetição do conflito que atingiu aquele sofrido território entre a véspera do Natal de 2008 e os primeiros dias de janeiro de 2009. Como chanceler do presidente Lula, estive na região, em janeiro de 2009, levando nossa solidariedade ao povo palestino e tratando do tema nas principais capitais. Foi essa uma das cinco vezes em que visitei Israel. Estive outras tantas na Palestina. No caso desta, minhas visitas se limitaram à Cisjordânia, especialmente a Ramallah. As autoridades israelenses não me permitiram ir a Gaza, quando tentei fazê-lo em 2010, apesar dos projetos de assistência técnica que o Brasil financiava, um dos quais em colaboração com Índia e África do Sul, os outros dois integrantes do fórum IBAS.

Tanto em Israel quanto na Palestina, constatei que setores importantes da população e lideranças expressivas desejavam ardentemente a paz. Do lado israelense, com matizes diferentes, homens como o escritor Amós Oz e organizações como a Peace Now eram críticos das ações belicosas do governo e buscavam o diálogo com os palestinos, inclusive por meio de contatos entre as respectivas sociedades civis. Quando falei com o grande escritor israelense sobre um possível foro de intelectuais, Oz acertadamente me respondeu que melhor seria um encontro entre educadores. Líderes como Shimon Peres e, mesmo, membros do atual governo, como Tzipi Livni, com quem estive quando ela era ministra do Exterior e, posteriormente, como líder da oposição, tentavam, com aparente sinceridade, encontrar uma solução pacífica e negociada para o conflito com os palestinos, sem a qual – compreendiam – Israel jamais poderá viver em segurança.

Na ocasião, eu via na rivalidade entre as duas principais facções palestinas (o Fatah e o Hamas) um dos óbices para que a opção por um caminho pacífico prevalecesse. Hoje, os dois principais partidos se uniram em um governo de coalizão, o que deveria, em princípio, facilitar a busca de soluções justas e viáveis para o conflito. Recordo-me que, certa vez, em 2008, perguntei ao principal negociador palestino (do Fatah) como ele pretendia convencer o Hamas a aderir a um eventual acordo com Israel. Ele me respondeu que, quando dispusesse de um “bom acordo” – que estava confiante em alcançar –, a Autoridade Palestina o submeteria a um referendo, do qual sairia vitoriosa.  Isso seria suficiente para atrair a parte da população que, à época, resistia à ideia do diálogo. Infelizmente, esse acordo nunca se materializou, em parte devido ao fracionado sistema político israelense, que assistiu ao crescimento dos partidos ultraconservadores, em parte, porque, contrariando as expectativas que se haviam criado na Conferência de Annapolis, em novembro de 2007, a pressão externa, indispensável para convencer Israel a fazer concessões penosas, nunca chegou a ser exercida de forma efetiva.

Mas a paz entre israelenses e palestinos continua a ser possível, mesmo que as imagens de morte e destruição vistas diariamente pareçam indicar o contrário. O fato de o presidente Barack Obama se oferecer para mediar um cessar-fogo entre Israel e o Hamas é um sinal positivo, pois aponta no sentido de um diálogo, que necessariamente envolveria todas as partes. O que seria então necessário para alcançar esse objetivo? Obviamente, não existem fórmulas mágicas, mas algumas definições são possíveis. O ponto principal é o que se refere à volta ao princípio de “terra por paz”,  base para os entendimentos de Oslo. Admitido esse princípio, é essencial que Israel – a parte mais forte – cesse unilateralmente os bombardeios a Gaza, que têm provocado o morticínio de famílias inteiras, deixando um rastro de revolta e ressentimento cada vez mais difícil de apagar. Seguramente, um gesto desse tipo seria seguido de decisão similar por parte do Hamas. Foi, aliás, o que ocorreu em janeiro de 2009.

É, também, necessário que Israel declare uma moratória indefinida na expansão de assentamentos, seja na Cisjordânia propriamente, seja em Jerusalém Oriental. A partir daí, é possível retomar as negociações, das quais o Hamas, direta ou indiretamente (já que faz parte da coalizão governamental palestina), participaria. Desse processo (e não vice-versa) é que pode decorrer o indispensável reconhecimento, por esse movimento, do direito de Israel a existir em segurança. Sem a moratória dos assentamentos, nem o mais moderado elemento da ANP se atreverá a reiniciar o diálogo com Israel. Tão logo possível, deve começar, ainda que inicialmente de forma simbólica, a demolição do muro, que impõe sofrimentos e humilhações à população palestina. Os itens para um entendimento definitivo (status de Jerusalém, retorno de refugiados, fronteiras precisas, acesso à agua) seriam objeto de negociação acompanhada de perto pela comunidade internacional, representada por um “quarteto (formado atualmente por EUA, União Europeia, Rússia e Secretariado da ONU) expandido”, com a presença de Estados árabes e países que mereçam a confiança de ambas as partes.

Tudo isso pode parecer utópico, mas não é. No início de 2008, logo após a Conferência de Annapolis, estivemos próximos desse ponto. Um pouco mais de determinação por parte dos que detêm poder de persuasão sobre um lado ou outro teria garantido o sucesso da empreitada. O “mapa do caminho” – nome que se deu ao roteiro para a paz, baseado no conceito de dois Estados vivendo, em segurança, lado a lado – não estaria livre de solavancos, mas estes não deveriam impedir a marcha em direção à paz duradoura.

Para alguém da minha geração – nascido durante a Segunda Grande Guerra em um país distante dos seus impactos mais diretos e que recebeu imigrantes de todos os quadrantes –, a imagem mais vívida das barbaridades cometidas no conflito era a que mostrava os corpos de judeus empilhados nos campos de concentração ou a dos esquálidos sobreviventes, inclusive crianças, com o pavor estampado na face.

Fui criado em Copacabana, bairro essencialmente plural do Rio de Janeiro e estudei em um colégio laico, onde havia descendentes de judeus oriundos da Europa Central, mas onde havia também grande número de filhos ou netos de árabes (a maioria de cristãos, é verdade), que abandonaram os territórios fragmentados do que fora um dia o Império Otomano. Os Meyer e os Kalman conviviam harmonicamente com os Khair e os Dabus. Meu melhor amigo e mais próximo companheiro durante os anos finais da adolescência era judeu. Com ele aprendi a apreciar música clássica e admirar pintores como Marc Chagall e Chaim Soutine. Minha primeira namoradinha (um namoro mais bem platônico, é verdade), que frequentava a mesma biblioteca pública que eu, na Praça do Lido, em Copacabana, onde estudávamos, juntos, para as provas do colégio e, por vezes, incursionávamos em autores franceses, como Sartre e Gide, era judia.

É lamentável que o humanismo que aprendemos a cultivar, em boa parte, como reação aos sofrimentos causados ao povo judeu, venha a dar lugar a outra visão, em que predominará a expressão da dor no rosto, coberto de lágrimas, da menina palestina, perdida no meio dos escombros causados pelos bombardeios israelenses, e que busca desesperadamente seus pais ou seus irmãozinhos, provavelmente mortos, ao mesmo tempo que procura, em vão, entender o mundo que a rodeia.

*Ministro da Defesa, foi chanceler durante o governo Lula. Escreve à convite da revista.

Fonte: Carta Capital


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