Aquelas crianças em fuga do massacre dos califas negros. Mães em busca dos pequenos dispersos no caos. E pessoas que morrem de sede nas montanhas de rochas e areia.
A água chega com um paraquedas do bondoso norte-americano. Os seus olhos perdidos nos olham do Iraque todas as noites na TV. Olham-nos as crianças de Gaza e as crianças sírias acampadas dentro de tendas quentes. E os menores que desembarcam como pacotes em Ragusa, onde o ex-ministro La Russa protesta porque foram acomodados em um edifício que “institucionaliza a acolhida”: fere os bolsos dos italianos e faz mal (na sua opinião) especialmente para as crianças… Pior do que isso, o que poderia acontecer com os pequenos náufragos à deriva, sem mães e pais desaparecidos sabe-se lá onde?
Nos últimos anos, 50 milhões de pessoas deixaram 30 países incendiados por guerras, fome, fanatismos. As agências da ONU improvisam escolas onde as crianças aprendem alguma coisa, precisamente alguma coisa, entre deslocamentos e novas fugas.
Em alguns anos, não sabemos como nossos filhos farão para organizar negócios e cruzar comércios com a outra metade do mundo que cresceu assim. Tínhamos rebatizado o século XX como dos refugiados, sem imaginar a catástrofe do novo século.
Na crônica dos destroços cotidianos, voltam os fantoches de sempre: mísseis de presente dos aiatolás devotos de Teerã aos integralistas do Hamas; de Moscou a Damasco, bombas, aviões e venenos a se dissolver no ar, enquanto Washington transforma Israel na quarta ou quinta potência militar do mundo, e Erdogan, sultão turco, come os dedos por ter armado os jihadistas dos massacres, na ilusão de derrubar Assad da Síria, sempre ali com Putin às costas.
Violências de hoje que todos os filhos – não importa se fugitivos ou brincando de férias –, todos, pagarão amanhã. Porém, ninguém renuncia à esperança. Nos dias do desespero, lembro-me, há três anos, do relato de Margarethe Von Trotta enquanto filmava Die bleierne Zeit, filme que nunca chegou à Itália: os pesadelos de uma menina da Berlim nazista à Berlim ano zero.
“Do lado de fora, guerra e ruínas, pouco para comer, trapos para vestir. Janelas sem vidros, paredes cobertas de mofo. Para se aquecer, eu dormia abraçada à mãe. Mudamos muitas vezes de casa, puxando o carrinho de uma estrada para a outra.”
Os Von Trotta tinham escapado de Moscou na queda do czar. Reencontraram-se na Polônia, e as tragédias continuaram. História da mãe: amor e o abandono quando estava por nascer a primeira filha, que lhe é impossível arrastar em uma fuga perigosa. Ele a deixa para a adoção e foge. Na velhice, ela recorda como uma obsessão a “pequena perdida”. Margarethe a acaricia imaginando o delírio.
Quando Von Trotta ganhou o Leão de Ouro de Veneza com Anos de chumbo, ela recebeu uma carta de uma estranha mulher que a vira na TV: “A sua mãe se chamava Elisabeth? Vinha de Moscou? Gostaria de falar com você. Acho que sou sua irmã…”. Margarethe sorri, cansaço da celebridade.
Encontro marcado em um café de Wiesbaden, e o coração para. Olhos e cor da mãe, a mesma ingenuidade, a mesma alegria: justamente a irmã que ela não sabia que tinha. Quantas mães e meninas que não se tornarão Von Trotta estão fugindo para o Curdistão ou cavando entre os escombros de Gaza?
Sabe-se lá se reencontrarão a sua história perdida.
Fonte: Unisinos