Intocada pela guerra, Crimeia se tornou um dos destinos de ucranianos que trocaram a pátria pela Rússia para escapar de combates que assolam sudeste do país.
No início do mês, a agência da ONU para refugiados anunciou que mais de um milhão de ucranianos deixaram suas casas devido aos conflitos no país. O número corresponde tanto a refugiados internos, quanto aos que deixaram o território ucraniano. Desses, 814 mil trocaram a Ucrânia pela Rússia, segundo dados da agência, e 87% são provenientes das regiões de Lugansk e Donetsk.
Diante do rápido aumento – em agosto, eram 730 mil os ucranianos asilados na Rússia por conta dos combates – o país agora conta com uma série de campos de refugiados, que vão da capital da Crimeia, Simferopol, a Moscou e São Petersburgo, passando por Belgorod, Briansk, Voronej, Kursk, Rostov e outras.
Hoje, há 36 mil ucranianos nesses campos, onde é preciso reaprender a viver: há filas para tudo, os homens vivem separados das mulheres, é preciso cozinhar, limpar, receber os novatos… Apesar de dura, a adaptação é também temporária, já que os refugiados são realocados depois de apenas uma semana.
A Gazeta Russa mostra como funcionam esses campos, e como o país está se preparando para abrigar os refugiados com o fim do verão na região e a queda das temperaturas.
Na aldeia de Mazanka, a apenas dez quilômetros de Simferopol – capital da Crimeia e maior cidade da península -, moram pessoas que descobriram na prática o que é a guerra. Ali, um campo de refugiados montado pelo Ministério das Situações de Emergência da Rússia abriga ex-moradores das regiões ucranianas de Donetsk e Lugansk, palco de batalhas entre o governo ucraniano e milícias separatistas que já duram meses.
Atualmente, vivem no acampamento de Mazanka mais de 800 pessoas. Esse número corresponde à metade da capacidade do lugar, mas o fluxo de refugiados cresce dia a dia.
Eles são levados ao campo em grupos organizados que chegam de ônibus do centro especial de distribuição Artek, em Simferopol. Muitas das famílias que chegam ao local têm bebês de colo e idosos.
“Nossa casa fica perto da cidade de Teplogorsk. Lá houve um grande bombardeio, sempre tivemos muito medo”, diz a refugiada Elmira Maltsev, moradora da cidade de Stakhanov, na região de Lugansk.
O lugar onde Elmira morava fazia parte do território apelidado de “Triângulo das Bermudas”. São as cidades de Stakhanov, Brianka e Altchevsk, onde estão as fábricas do empresário ucraniano e governador da região de Dnipropetrovsk, Ígor Kolomoiski.
“É por isso que a Guarda Nacional da Ucrânia protege bem esse local. Mas as cidades mesmo estão quase vazias. Eu, meus dois filhos e meu marido decidimos deixar a cidade. Atravessamos a fronteira de Izvarino, na região de Rostov.De lá, tomamos primeiro um ônibus, depois uma balsa para a Crimeia”, conta. “Quando saímos, colei fita crepe nas janelas de casa, como faziam durante a Segunda Guerra Mundial, para os vidros não quebrarem por causa das explosões.”
Reino do otimismo
O campo de refugiados em Mazanka tem várias tendas grandes e um dormitório de alvenaria onde, além de quartos, há banheiros, chuveiros e cozinha. Devido ao grande número de refugiados, há sempre grandes filas para tudo. Poucos, porém, reclamam, e reina o otimismo.
“Ganhamos comida para os bebês, fraldas, pasta de dente, escovas. Temos tudo o que precisamos essencialmente”, diz Katerina Gorelkina, da cidade de Lisitchansk, na região de Lugansk. “É claro que queremos voltar para casa, mas agora é impossível. Não tem quase ninguém lá, a região está sendo bombardeada, e os preços dos produtos subiram muito. Agora, as condições aqui estão melhores.”
No acampamento em Mazanka homens e mulheres vivem em espaços separados. Enquanto elas ficam abrigadas no dormitório de alvenaria, os homens ficam nas tendas.
Cada quarto do dormitório pode hospedar de 10 a 20 pessoas. No pátio, há uma caixa de areia para crianças brincarem. Os refugiados devem manter o local limpo por si sós. Há os que não se adaptam imediatamente, mas é preciso cozinhar, lavar a roupa, limpar as lixeiras, ajudar a instalar os recém-chegados.
Assim como Elmira, Artiom Mamikin é de Teplogorsk. Ele, porém, se acostumou com a nova vida mais rápido. “Fizemos novos amigos, nos comunicamos com vizinhos. Eles nos ajudam”, diz Artiom.
Notícias do front
É comum escutar ecoar pelo campo a pergunta “Como estão os nossos parentes?”. Algumas vezes, não há nenhuma notícia vinda das áreas de combate. Mas, pouco a pouco, os refugiados conseguem reunir relatos sobre a situação dos lugares de onde vieram. As informações mais confiáveis vêm dos recém-chegados. Os refugiados os rodeiam para perguntar se os amigos estão vivos, se as casas não foram derrubadas e se o bombardeio continua.
Rostov, região russa na fronteira com a Ucrânia, é a rota da maior parte dos que querem chegar à Crimeia.Além do perigo de outros caminhos, há também o suborno exigido pelas tropas. “Várias vezes quase fomos arrancados de dentro dos ônibus porque tínhamos uma autorização das autoridades russas”, diz Katerina. No fim das contas, ela conseguiu atravessar a fronteira pagando uma propina de 200 hrivna (o equivalente a R$ 34).
Os refugiados ficam no acampamento de Mazanka por cerca de uma semana. Depois, seguindo a ordem de chegada, são levados de avião para a Rússia continental. A família de Elmira, por exemplo, será enviada para Kemerovo, cidade a 3.500 quilômetros de Moscou famosa por sua mineração, no sul da Sibéria Ocidental. Lá, prometeram um emprego a seu marido, que é mineiro.
“Não há trabalho na minha terra. Minha irmã fechou sua farmácia, pois não há mais fornecimento de medicamentos para lá”, diz Elmira. “Nossa região era diretamente ligada à Rússia. Agora, a grande questão é como manter a economia da região.”
Fonte: Gazeta Russa