O menino perdido que se encontrou

segunda-feira, outubro 13, 2014

Sudanês passou fome, foi criança-soldado e hoje é ator

gerAos 14 anos, Ger Duany já havia caminhado descalço por centenas de quilômetros no Sudão, onde nasceu, tinha passado quatro anos em campos de refugiados na Etiópia e lutado como criança-soldado. Uma vez, ele andou tanto que as unhas dos seus pés caíram; em outra, fugiu de soldados nadando em um rio cheio de cadáveres. Mas Duany, um entre os milhares de crianças que ficaram conhecidas como “meninos perdidos”, os menores desabrigados pela civil sudanesa que começou na década de 1980, não se queixa.

— Eu não diria que foi uma vida difícil, de verdade. Só tive vários desafios quando era muito jovem — afirma ele. As experiências da juventude de Duany não são muito diferentes daquelas vividas pelo personagem que ele interpreta em “The Good Lie” (A Boa Mentira, em tradução livre), dirigido por Philippe Falardeau. No filme, Duany faz o papel de Jeremiah, refugiado sudanês que começa uma vida nova em Kansas City, no Missouri. Lá, ele e mais dois colegas da turma dos “meninos perdidos” conseguem empregos, têm que se ajustar a aspectos novos e estranhos da vida no Ocidente, como a água encanada e a gelatina, e ficam amigos de Carrie Davis, uma assistente social rabugenta, mas de bom coração, vivida por Reese Witherspoon, em um papel coadjuvante.

Com uma barbicha e olhos como o de um gato, Duany falou da sua vida durante um café da manhã. Agora com 35 anos, ele tem um jeito sarcástico, um modo brincalhão, seja para falar do tamanho da sua família na África, que tem 63 irmãos e irmãs, descendentes das nove mulheres do seu pai, ou para se lembrar da sua surpresa ao saber o quanto um típico americano come e quantas vezes ao dia. Como Jeremiah, Duany veio pela primeira vez para os Estados Unidos quando era adolescente.

Depois de passar grande parte de sua vida em acampamentos de refugiados na África ou fugindo deles, ele se viu, aos 16 anos, em uma escola do ensino médio em Des Moines, no estado de Iowa, em que quase todos os alunos eram brancos.

— Havia alguns negros lá, mas eles não eram tão negros quanto eu — afirma ele com uma risada. — E eles falavam um inglês que eu não entendia —

Duany finalmente aprendeu a língua dos seus colegas, assistindo a episódios do programa “Yo! MTV Raps”, e começou a jogar basquete com treinadores entusiasmados por, de repente, contar com um garoto muito alto e com excelente resistência. Por causa do esporte, ele recebeu ofertas de bolsas de estudo, incluindo uma para o Los Angeles Southwest College, para um curso de dois anos, onde, em 2001, ele e os seus colegas do time Cougars ganharam seu primeiro e único campeonato estadual.

Em 2003, durante uma pausa no basquete, Duany desempenhou um pequeno papel como um órfão sudanês na comédia existencial de David O. Russell “Eu (coração) Huckabees”. Durante a filmagem em Los Angeles, Duany conheceu o produtor independente Robert Newmyer (de “sexo, mentiras e videotape” e “Dia de Treinamento”), que estava trabalhando em um filme sobre os “meninos perdidos” com a roteirista Margaret Nagle.

— Ger foi o primeiro ator que vimos para o filme, há 11 anos — conta Nagle. — Bobby e eu ficamos pensando: ‘Esse é o cara. Ele tem que estar nesse filme’ —

O que aconteceu em seguida foram vários anos de esforços para transformar “The Good Lie” em realidade, o que envolveu uma aprovação da Paramount, uma mudança de perspectiva quando novos executivos assumiram o estúdio, uma parada na lista negra, um grupo de roteiros bons, mas ainda não produzidos, a morte de Newmyer, aos 49 anos, de ataque cardíaco, os esforços de Nagle para comprar o roteiro e, no último dia depois de 18 meses de ofertas, sua aquisição pela produtora Molly Smith.

— Foi muito difícil, porque não é algo em que Hollywood está pensando — explica Nagle, acrescentando: — Mas você só precisa de um sim —

Quando Duany recebeu uma cópia do roteiro em 2012, tanto tempo havia se passado que ele precisou perguntar ao diretor de elenco se esse era realmente o mesmo filme sobre o qual ele havia conversado com Newmyer quase uma década antes. E era. “Quando eu li, as lágrimas começaram a cair”, conta.

— Ele me fez voltar no tempo, com todas as lembranças dolorosas —

Witherspoon viu Duany pela primeira vez durante as audições, um processo de seis meses que envolveu 1.500 pessoas que queriam ser atores, a maioria deles refugiados sudaneses vindos do mundo todo (o filme também é estrelado por Emmanuel Jal, outro “menino perdido” e criança-soldado, e pelo ugandense Arnold Oceng, filho de refugiados).

— Ele já viu muito tumulto, guerra e destruição em sua vida, mas consegue ser leve e agradecido por tudo — afirma ela sobre Duany em uma entrevista por telefone. Witherspoon se lembrou de um momento em que um membro da equipe viu um animal morto na estrada e começou a chorar. Duany então contou que, no Sudão, eles costumavam ver crianças mortas pelo caminho. Eles não choravam, em vez disso, ele e seus companheiros “meninos perdidos” pegavam os sapatos delas.

— É um daqueles momentos em que você se dá conta da profundidade do que ele viveu como ser humano e do quanto ele aguentou — diz Witherspoon. — E ele falou tão pouco sobre isso —

Além do lançamento nos cinemas, “The Good Lie” será exibido em eventos especiais, como no Museu da Tolerância, em Los Angeles, para ajudar a aumentar a conscientização sobre a prolongada situação dos refugiados sudaneses. Trata-se de um fórum bem-vindo para defensores como Joan Hecht, fundadora da Alliance for the Lost Boys of Sudan (Aliança para os meninos perdidos do Sudão), que fica em Jacksonville, na Florida.

— Pode ser que os detalhes do filme não sejam verdadeiros ou não tenham realmente acontecido, mas eu não conheço nenhum filme de Hollywood que não seja assim —  afirma ela. — E ele mostra às pessoas como essa história é comovente e como esses jovens são incríveis —

Duany retornou a África recentemente e passou a maior parte do verão visitando sua mãe, que vive num campo de refugiados no Quênia e tem a doença de Alzheimer, e procurando e ajudando vários parentes na Etiópia. Entre a viagem para a África, um livro que está escrevendo sobre a sua vida e “The Good Lie”, Duany passa muito tempo pensando sobre o que já viveu e sobre seu primeiro voo para Des Moines.

— Logo que cheguei aqui, eu era um novato no colegial, embora nunca tivesse realmente ido para escola — conta ele. — Eu só falava um bê-á-bá e mal conseguia entender o que minha professora estava dizendo. Mas eu tinha noção de que era suficientemente inteligente para aprender. Sabia que poderia aprender se tivesse a chance de simplesmente ir para a escola e não ouvir tiros —

Fonte: ZH


Um Comentáio para O menino perdido que se encontrou

  1. só Deus pra nos responder diante de tantas coisas inexplicáveis.. ha um proposito de Deus em cada um desses irmãos e um grande testemunho de vida para todas as nações.

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