A Síria segundo os sírios

sexta-feira, janeiro 17, 2014

Fotos: Bernardo Salce/Agência i7

Refugiados, nativos e descendentes que vivem em Belo Horizonte revelam sua visão sobre o conflito (Fotos: Bernardo Salce/Agência i7)

De jeans, tênis e camiseta, o jovem Gaby Aboeid costuma passar por brasileiro na papelaria em que trabalha em Belo Horizonte. Só o sotaque denuncia que o rapaz de 25 anos é estrangeiro – na verdade, um refugiado. Em fevereiro de 2013, ele, a mãe e dois irmãos trocaram a Síria pela capital mineira, na busca de escapar do conflito civil que assola seu país desde março de 2011. Aqui, moram na casa de parentes da avó materna. “Também temos família na Austrália, mas o governo brasileiro é mais aberto e receptivo”, compara.

Gaby é de Homs, cidade a 180 quilômetros a noroeste da capital Damasco e um dos principais palcos do confronto entre rebeldes e aliados do presidente Bashar al-Assad (veja linha cronológica nesta e nas próximas páginas). Com a devastação da cidade, em 2012, ele e a família abandonaram sua casa e se transferiram para Wadi al-Nasara, uma vila na província de Homs, majoritariamente cristã. O próprio clã Aboeid é representante de 10% da população síria seguidora do cristianismo, um total aproximado de 250 mil fiéis. Justamente por essa particularidade, um tanto ignorada no Ocidente, Gaby é totalmente a favor do atual governo de seu país. “Temos ampla liberdade religiosa na Síria. Isso não é problema por lá. Bashar não é ditador como acreditam no Brasil. É um presidente muito, muito bom”, afirma.

A  declaração vai contra o que diz o noticiário internacional. Mas é praticamente unanimidade entre os quase 100 mil sírios e descendentes que residem em Belo Horizonte, de 3,5% a 4% da população segundo o Consulado Honorário da República Árabe da Síria em Minas. “Bashar é muito querido entre o povo. Em seu governo, ele deu ênfase ao país, abriu o comércio para importação e exportação e respeitou a diversidade religiosa”, defende o cônsul honorário da Síria de Belo Horizonte, Lycio Cadar. Para ele, o termo ditador é mal-empregado, embora o presidente já se mantenha há 13 anos no poder e tenha como antecessor o próprio pai, Hafez al-Assad. “Bashar foi eleito pelo parlamento em 2000 e reeleito em 2007. Nas duas ocasiões, convocou eleições para confirmar se o povo o queria ou não no poder. Até mesmo os cidadãos sírios nas colônias estrangeiras votaram, inclusive no Brasil. A vitória foi quase unânime”, afirma Cadar.

A aprovação a Bashar vem realmente de todos os lados da comunidade síria residente em Belo Horizonte. Presidente do Clube Esporte Sírio, na Pampulha, Najwa Safar Seif foi uma das que votou a favor do presidente nos plebiscitos e aprova sua gestão. “Ele transformou a Síria em um país moderno, civilizado, liberal, com harmonia entre cristãos e muçulmanos. Lá, as mulheres não precisam usar burcas e podem trabalhar, as pessoas consomem bebidas alcoólicas e todos têm acesso a internet. É um país à parte no Oriente Médio”, descreve. Vivendo há 32 anos no Brasil, Najwa costumava viajar anualmente para sua terra natal, a fim de visitar os quatro irmãos, que moram em Damasco. “Agora não dá mais. Além de haver cidades totalmente destruídas, todas as entradas da capital estão cercadas por barreiras do exército do governo. O povo está sitiado”, diz.

A realidade, porém, é mais complexa e o estado de sítio vem de longa data. Embora tenha vencido os plebiscitos com esmagadora maioria (97,29% em 2000 e 97,62% em 2007), Bashar é, sim, uma figura controversa. Formado em medicina, assumiu o poder aos 34 anos, após a morte do pai. Para isso, a Constituição do país sofreu uma emenda, pois Bashar era seis anos mais novo da idade mínima exigida para o posto.

De fato, no início do governo, ele assumiu uma postura mais democrática, incentivando a difusão da internet, liberando prisioneiros políticos e estimulando algumas reformas econômicas. Mas, do ponto de vista político, o país continuou imóvel. “A Síria não chega a ser tão intolerante como outros países do Oriente Médio, mas não tenho dúvida de que se trata, sim, de um regime ditatorial e com imposições violentas. Além de Bashar pertencer a uma espécie de dinastia, não se pode chamar de democrático alguém que governou por mais de uma década em estado de sítio”, analisa o cientista político Fábio Wanderley Reis, professor emérito da UFMG.

O presidente e sua família são alauítas, ramificação do xiismo islâmico que representa apenas 10% da população muçulmana, predominantemente do ramo sunista. “Porém, ao contrário do que pensa o mundo ocidental, a fé não é um componente tão significativo no Oriente Médio. Existem divergências religiosas, sim, mas os principais motivos da briga são a disputa política e geográfica e as más condições de trabalho e infraestrutura”, pondera o analista de relações internacionais Rafael Ávila, professor do UniBH, especialista em guerras, guerrilhas e terrorismo. Vale lembrar que desde o governo de Hafez al-Assad, nos anos 1970, os alauítas pertencem à elite síria, ocupando altos postos corporativos e militares. O grupo também é bastante tolerante ao cristianismo, o que explica, em parte, a adesão da comunidade cristã que vive no Brasil.

Em Belo Horizonte, a Igreja Sagrado Coração de Jesus, no bairro Funcionários, é o refúgio para a colônia dos siríacos católicos desde 1925. O padre George Rateb Massis já é o quinto sacerdote sírio a se mudar para Belo Horizonte para cuidar da paróquia. Em um altar com a bandeira da Síria, ele celebrou em 7 de setembro uma missa em pedido especial à paz na Síria e conforto às famílias vítimas da guerra, pedido do papa Francisco. “Esse confronto assumiu razões internacionais. Os Estados Unidos e países aliados classificam o Oriente Médio como perigoso e fanático, sem entender o mosaico árabe. Eles estão tentando se aproveitar da situação para repetir o Iraque na Síria e minimizar o poder local”, opina.

O padre George também é natural da região de Homs, mais especificamente na aldeia Zaidal. Em 2012, ele passou 40 dias em sua terra natal para apoiar as vítimas que tiveram suas casas destruídas pelos bombardeiros e abrigadas em escolas, igrejas e hospitais. Na bagagem, levou 20 mil dólares doados pelos brasileiros. “Tenho mãe e uma irmã casada por lá. Já tentei trazê-las para o Brasil, mas elas não querem. Dizem que estão bem lá e confiantes de que o país voltará a viver tempos de paz. Eu mesmo não tenho medo. Sei que a Síria é forte.”

Essa também é a esperança da família Aboeid, que gostaria de retornar à Síria quando o conflito acabar. “Mesmo com toda a ameaça que os cristãos estão sofrendo, meu pai decidiu continuar no país. Ele tem 66 anos, não fala inglês e português e achou que seria muito difícil arranjar trabalho em uma terra estrangeira”, diz Gaby Aboeid. Mas ao contrário do padre George, ele e a mãe estão bastante preocupados. “Os rebeldes estão cada vez mais se voltando para os cristãos, justamente na região em que meu marido está”, diz a matriarca Mouna Aboeid.

Com cerca de 100 mil mortes, desde o início do confronto, é difícil encontrar alguém da colônia síria que não tenha amigos ou parentes entre as vítimas. É o caso da família Dahi Curi, radicada no Brasil desde 1950. “Um dos meus primos pertencia às tropas do exército do governo. Há poucos meses, ele morreu com um tiro na testa”, conta o advogado aposentado Jorge Curi. A casa de seu pai, em Homs, também foi totalmente destruída pelos bombardeios. “Quase toda a cidade foi destruída. Tenho muito medo de que nossos parentes sofram ainda mais barbaridades.”

Filhos do ex-cônsul Antônio Cadar, que dá nome a uma das principais avenidas do bairro São Bento, os irmãos Lycio e Lecy também tinham família na região de Homs. Suas casas foram completamente destroçadas e o clã foi obrigado a se mudar para Tartus, uma cidade à beira-mar a 220 quilômetros de Damasco. “Tememos muito pela segurança deles. Se houver uma intervenção militar norte-americana, a região poderá ser o próximo alvo e porta de entrada do exército”, diz Lecy Cadar.

A questão da interferência dos Estados Unidos – cogitada pelo presidente Barack Obama em agosto, logo após o ataque com armas químicas no subúrbio de Damasco, de autoria não identificada até hoje – é outro ponto que atemoriza a colônia árabe. Todos os entrevistados são totalmente contra qualquer intervenção. “Cada povo resolve o seu problema. Queremos a paz, mas sem a interferência dos Estados Unidos. Se isso acontecer, aí sim teremos uma guerra”, afirma a professora aposentada Miriam Dahi Curi.

A comparação com o vizinho Iraque é inevitável. “Os Estados Unidos provocaram um massacre histórico naquele país em busca de armas de destruição em massa nunca encontradas. Eles causaram inúmeras mortes, destruíram monumentos históricos, criaram uma guerra no país. Não queremos nada disso para a Síria”, diz Lycio Cadar.

Fortemente influenciado pelos interesses israelenses e disposto a conquistar mais um ponto estratégico no Oriente Médio, o governo norte-americano peca ao assumir uma postura militarista, e não humanitária. “Obama está sendo obviamente precipitado, inclusive sem o apoio da opinião pública. Seu discurso é incongruente com suas ações como candidato e oposição ao governo George W. Bush”, avalia o cientista político Fábio Reis. Para ele, a solução do conflito deve ser puramente diplomática, orquestrada pelo Conselho de Segurança da ONU. “É insustentável que a situação política da Síria continue como está, com tantas pessoas perdendo a vida, tanto do lado do governo, quanto dos rebeldes.”

Na prática, a resolução também deve passar pelo desarmamento químico vistoriado pela Síria. “O governo também deve negociar com os rebeldes e dar início a um processo realmente democrático, com possibilidade de construção de diálogo e propostas de um novo modelo político”, diz o analista Rafael Ávila.

O desfecho pode significar a saída de Bashar al-Assad do governo, o que desagrada muito aos sírios residentes em Minas. “Não gostaria que ele renunciasse. Se isso acontecer, temo que alguém ligado a uma ramificação islâmica mais radical assuma o poder. Isso seria péssimo para os cristãos”, opina o advogado Filipe Dahi Curi, descendente de sírios. O argumento da tolerância faz sentido à primeira vista, principalmente à mentalidade ocidental, mas pode esconder um pacto silencioso com o autoritarismo, já que desconsidera a maioria sunita. “O desafio da democracia é criar mecanismos institucionais que garantam a força do poder majoritário e, ao mesmo tempo, atenuem a vigência dele, garantindo o direto das minorias. Só assim ambos os lados poderão ser resguardados do exercício puro e simples do poder autoritário”, pondera Fábio Reis.


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