Vários voluntários e voluntárias trabalham em um galpão industrial na cidade de Málaga, organizando milhares de quilos de arroz, açúcar, lentilha e óleo, que este mês serão enviados para os acampamentos de refugiados saaraui de Tinduf, no oeste da Argélia. “Esperamos enviar cerca de 60 mil quilos de alimentos básicos”, disse Isabel González, presidente da Associação Malaguenha de Amizade com o Povo Saaraui (Amaps), enquanto mostrava à IPS as caixas empilhadas sobre paletes de madeira no galpão na periferia de Málaga.
Essas são cenas que se repetem este mês, nessa e em outras cidades de Andaluzia. No dia 15, começou em Málaga e outras cidades andaluzes o carregamento dos caminhões, que formarão a Caravana pela Paz, que no dia 22 partirá da cidade de Alicante com destino a Orán, na Argélia, para depois seguir até o deserto. Nos acampamentos de Tinduf vivem refugiados milhares de saaraui que fugiram das tropas do Marrocos, quando estas ocuparam a maior parte do Saara Ocidental, no noroeste africano, depois que a Espanha abandonou à sua própria sorte, em 1975, esse território que estava sob seu domínio.
Além da solidariedade, a Espanha deve assumir “um compromisso político” para saldar sua “dívida” histórica com o Saara, opinou González. O deserto de Tinduf “não é lugar para se viver. Aquilo é nada”, ressaltou. Desse lugar, a cada ano viajam para a Espanha meninos e meninas saaraui de sete a 12 anos para passarem os meses de julho e agosto com famílias voluntárias de todo o país.
O programa Férias em Paz nasceu em 1993, após o cessar-fogo entre Marrocos e a Frente Polisário, que encabeça a República Árabe Saaraui Democrática, também conhecida como Saara Ocidental. Permite aos acolhidos ampliar seus conhecimentos de espanhol, sua segunda língua, “viver outra realidade e trazer uma mensagem de paz”, detalhou González. Durante a primeira semana na Espanha as crianças saaraui fazem exame médico e recebem eventuais tratamentos, graças a um convênio com os serviços de saúde espanhóis.
Desde seu começo, 30 mil meninas e meninos saaraui foram acolhidos por famílias espanholas, segundo a Federação Andaluza de Associações Solidárias com o Saara (Fandas), com presença nas oito províncias de Andaluzia. “As crianças são os melhores embaixadores da causa de seu povo”, assegurou González, destacando o objetivo de sensibilização e denúncia dos projetos de sua associação, que integra a Fandas.
Em 2013, foram acolhidos em Málaga 81 meninos e meninas, cerca de 1.400 em toda Andaluzia e aproximadamente quatro mil na Espanha, segundo González. A crise econômica deste país reduziu a ajuda para esses programas, que são coordenados com a Meia-Lua Vermelha saaraui.
A malaguenha Antonia Silva, auxiliar de enfermagem, é voluntária na Amaps desde 2005, porque “é um assunto de direitos humanos” sobre o qual “a opinião pública deve se conscientizar”, disse à IPS. Ela acolheu a mesma menina por quatro verões consecutivos. Mas não poderá recebê-la mais. Com 14 anos, a adolescente morreu em consequência de um tumor no fígado.
O malaguenho Rafael Gálvez, fundador da associação humanitária MRAVIH, em homenagem a um amigo saaraui falecido, criou nos acampamentos uma escola de emergências para formar voluntários saaraui em primeiros socorros. Além disso, organiza palestras em colégios espanhóis, bem como corridas solidárias e outras atividades para sensibilizar e arrecadar fundos para alimentos, remédios e roupa que seguirão pela Caravana.
A Caravana pela Paz é nacional, mas as comunidades alternam organizadamente os envios para que estes cheguem de forma periódica a Tinduf. Agora é a vez da Andaluzia. A solidariedade com o povo saaraui se expressa em cerca de 200 organizações, agrupadas na Coordenadoria Estatal de Ajuda ao Saara, com delegados territoriais em todas as comunidades autônomas e em Madri. “É o maior movimento solidário existente na Espanha”, explicou à IPS o delegado saaraui para as cidades de Málaga e Granada, Abdalahe Jalil.
A ajuda tem uma vertente humanitária e outra política. Nessa última, associações e delegados saaraui pressionam partidos políticos, sindicatos e entidades de caráter nacional e internacional sobre a necessidade de realizar o referendo de autodeterminação do povo saaraui. Segundo sucessivas resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU), o processo de descolonização de um território obriga a metrópole a realizar previamente em sua colônia um referendo de autodeterminação.
Os ativistas saaraui denunciam o abandono dos refugiados nos acampamentos do deserto argelino, e também as prisões e torturas dos que pedem o referendo de autodeterminação nos territórios do Saara Ocidental ocupados pelo Marrocos. “A voz dos saaraui na área ocupada não chega a parte alguma”, destacou Jalil no galpão dos alimentos. “Nós divulgamos o que acontece: a injustiça dos presos políticos, a falta de liberdade de expressão e a violação dos direitos humanos”, acrescentou.
Outro saaraui, Ahmed Sid Ahmed, que foi professor de espanhol em escolas dos acampamentos, entre 1989 e 2003, pontuou à IPS que a ajuda alimentar é básica para a sobrevivência dos refugiados, mas “o problema não é comida. A solução deve ser de longo prazo e passa por uma saída política para o conflito”.
Ahmed, que vive em Málaga desde 2003 com sua mulher e seus três filhos homens, de 16, 12 e um ano, contou que muitas famílias espanholas que acolhem crianças saaraui visitam os acampamentos. “Uma vez um pai levou seu filho de 11 ou 12 anos para se conscientizar da situação em que vivem outras crianças”, contou este homem que estudou em Cuba e cujos pais e irmãos vivem nos acampamentos.
A associação malaguenha enviou ao longo destes anos quatro ambulâncias, um caminhão-tanque, mobiliário para 16 salas de aula de uma escola primária e 1.200 placas solares para moradias unifamiliares. Enquanto os refugiados sobrevivem no deserto da Argélia dependentes da ajuda humanitária, um acordo de pesca adotado em 2006 pela União Europeia em Rabat permite aos barcos europeus trabalhar em águas territoriais do Saara Ocidental, o que para os ativistas saaraui representa o espólio dos recursos naturais de seu povo.
A ONU não reconhece a soberania do Marrocos sobre o Saara Ocidental. “O Saara Ocidental constitui um magnífico exemplo de como os interesses políticos e estratégicos podem ser obstáculos à realização dos princípios e valores que o direito ampara”, afirma a Associação Espanhola para o Direito Internacional dos Direitos Humanos em sua publicação de 2012, Paz, Migrações e Livre Determinação dos Povos. Envolverde/IPS
Fonte: IPS