Refugiados do caos e o direito à vida

quarta-feira, março 12, 2014

refugiados africanos

Imigrantes africanos refugiados do Sudão e da Eritreia protestam em Tel-Aviv contra detenções em massa de clandestinos. Foto: Reuters / Ronen Zvulun

O texto que segue é intrigante. Vou convencê-lo de que Israel tem obrigação de abrigar os milhares de refugiados de guerra que se encontram em seu território. Se a indiferença falar mais alto, aconselho que pare por aqui. Se o seu objetivo ao ler esse texto for a busca por entendimento, devo dizer que a jornada será longa, porém frutífera. Não conduzo meus argumentos por uma ordem moral de justiça, mas por dados empíricos. Eis a minha análise.

Em ‘Refugiados ilegais ou Imigrantes de guerra?’ abordei o aspecto político-judicial da situação de milhares de africanos que se encontram, atualmente, em Israel. Naquela ocasião apontei três fatores como responsáveis pela dúvida popular sobre o status desses imigrantes: (1) o vácuo constitucional produzido pelo status de “proteção temporária”; (2) o embate político entre o governo israelense e órgãos das Nações Unidas localizados no país; e (3) a dualidade trabalhista. No entanto, a análise das complicações políticas e constitucionais nos contam apenas parte da história. Para entendermos a questão dos refugiados de guerra em Israel é necessário examinarmos os argumentos daqueles que clamam pela extradição desses imigrantes ilegais e a reação daqueles que lutam pelos direitos do refugiado.

Um argumento frequentemente utilizado por aqueles a favor da extradição refere-se a ausência de qualquer obrigação israelense de mantê-los em seu território. No entanto, aos falarmos em obrigações, deveres e direitos temos que analisar o que a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (CRER), assinada por Israel em 1954 e emendada pelo Protocolo de 1967, nos diz.

Segundo a Convenção, as partes contratantes concordam tanto com a definição de refugiado de guerra quanto com o Artigo 33° que afirma que “nenhum dos Estados contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçados em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas”.

O Artigo 33° deixa clara a obrigação legal dos países contratantes, como Israel, de abrigar e preservar todo e qualquer refugiado de guerra que se encontre dentro de seus limites territoriais. Diante do compromisso assumido por Israel, a pergunta que segue é se os 56 mil imigrantes ilegais que se encontram em território israelense devem ser considerados refugiados de guerra.

Um dos argumentos mais populares (e, portanto, um dos mais insidiosos) contra a permanência desses imigrantes é a alegação de que, na realidade, eles não buscam asilo político em Israel e não podem, portanto, ser denominados refugiados de guerra. Segundo aqueles que sustentam essa posição, esses imigrantes vêm à Israel em busca de melhores condições de trabalho, ou seja, por um simples objetivo econômico. Analisemos esse argumento. Atualmente, cerca de 56 mil refugiados (ou “infiltrantes”, como são, comumente, chamados) encontram-se em Israel. 36 mil são provenientes da Eritréia, 14 mil do Sudão e o restante é originário, majoritariamente, de países asiáticos. O governo israelense reconhece oficialmente que a vida desses “penetras africanos” estaria em perigo em seus países de origem. O reconhecimento dessa situação é o que faz Israel conceder o status de proteção temporária a essa população; caso contrário, não haveria razão para essa concessão.

Além do reconhecimento oficial do governo israelense, consideremos as situações de Sudão e Eritréia. Diversas organizações de direitos humanos denunciam diariamente as condições humilhantes e desumanas que eritreus e sudaneses enfrentam na luta diária por sobrevivência. Escravidão sexual e trabalho forçado em regiões minadas fazem milhares de vítimas todos os dias em ambos os países. O regime ditatorial na Eritréia é dirigido por leis militares sob as quais qualquer voz opositora está sujeita a repressão, tortura, estupro e execução sem julgamento. A Organização das Nações Unidas, inclusive, declarou que a situação na Eritréia é um “desastre humanitário” e definiu a atual conjuntura no Sudão como genocídio. Não suficiente, mais de 26 mil pedidos de asilo político foram concedidos a eritreus em diferentes partes do globo. Uma breve investigação aponta que 82% de eritreus e entre 65-70% de sudaneses que buscam asilo político foram reconhecidos como refugiados de guerra por diferentes países. A vida desses “infiltrantes” está em perigo. Homens, mulheres e crianças chegam em Israel escapando da tirania e da violenta opressão que sofrem em seus países. Essas pessoas são, sem sombra de dúvida, refugiadas de guerra, ou, melhor dizendo, do caos. Elas se enquadram, perfeitamente, na definição de refugiado proposta pela CRER e assinada por Israel.

Mas por que justo Israel é que deve abrigar esses refugiados? Por que outros países não o fazem? Bom, na realidade, eles fazem. A lista abaixo aponta o número de refugiados absorvidos por diferentes países entre 2008 e 2012:

tabela

Tabela com número de refugiados absorvidos por diferentes países entre 2008 e 2012.

E Israel? Bom, Israel, como dito anteriormente, absorveu 56 mil imigrantes ilegais entre os anos 2000 e 2013, mas insiste em não concedê-los o status de refugiado que lhes é devido. Outros países estão fazendo o dever de casa. Está na hora de Israel começar a fazer o seu.

Mas, calma aí! Israel é um país minúsculo e 56 mil é um grande número, capaz de provocar um distúrbio demográfico. Para saber a exata proporção dessa quantidade devemos colocá-la em contexto. A população israelense é de, aproximadamente, 8 milhões de habitantes. Dessa forma, há seis refugiados para cada mil israelenses, meros 0,6% da população. Comparemos, novamente, com outros países. A lista abaixo é de 2012 e indica a porcentagem de refugiados em relação ao total de habitantes em alguns países.

tabela

Tabela com porcentagem de refugiados em relação ao total de habitantes em alguns países.

Como pode-se observar, a proporção de refugiados em Israel é menor do que a apresentada pelos países acima. Note que a escolha dos países não foi aleatória. A lista apresenta países com dimensões populacionais semelhantes (ou menores que) a de Israel, tornando a comparação ainda mais apropriada. O fato é que 56 mil refugiados, quando colocados em contexto, não constituem um grande número. A “ameaça demográfica” é,  portanto, fictícia.

Você poderia afirmar ainda que se Israel permitir a permanência desses refugiados, muitos outros virão, provocando, assim, o tal “distúrbio demográfico”. Seria verdade, se Israel já não tivesse solucionado esse problema. Em Dezembro de 2012 foi concluída a construção de uma cerca na fronteira com o Egito, impedindo, assim, o aumento do fluxo de imigrantes que entram ilegalmente no país.  A medida foi, de fato, eficiente. Compare o número de refugiados que entraram em Israel nos últimos anos:

tabela

Tabela comparativa: número de refugiados que entraram em Israel nos últimos anos.

Não há dúvidas: a cerca construída provocou uma queda brusca no número de refugiados em Israel. Dessa forma, a possível ameaça demográfica já não constitui um argumento plausível; a estratégia de tornar a questão dos refugiados um problema de longo prazo não se mostrou exitosa. De fato, o foco deve ser o que fazer com aqueles que se encontram em território israelense no curto prazo.

Mas, deixemos a questão demográfica de lado por um momento. Analisemos o argumento, tipicamente utilizado por aqueles que clamam pela extradição, de que os “invasores africanos” tendem a ser violentos e inclinados a uma vida criminosa. Apesar do argumento possuir um certo apelo popular, ele é, em grande parte, xenófobo e racista. Analisemos os dados do sistema policial israelense referentes as cidades onde há maior concentração de refugiados. Será que 56 mil refugiados são responsáveis pela (inexistente) “onda de crime” que assola a sociedade israelense?

Em 2010, o índice de criminalidade em Tel Aviv-Iafo era de 6%, enquanto a taxa entre os refugiados era menor que 1%. Seriam eles os  responsáveis?

Em Eilat o índice era pouco menor que 6%, enquanto a taxa entre os refugiados era menor que 1%. Seriam eles os  responsáveis?

Em Arad o índice era menor que 3%, enquanto a taxa entre os refugiados era de 2%. Seriam eles os  responsáveis?

Em Ashdod, o índice era de 2%, enquanto a taxa entre os refugiados era de 1%. Seriam eles os  responsáveis?

O argumento de que nossos “novos imigrantes” eritreus e sudaneses apresentam uma tendência a vida criminosa não possui qualquer base empírica. A alegação é, portanto, falaciosa. No entanto, é necessário notar que o índice de criminalidade entre os refugiados tende a aumentar. Não por uma predisposição “natural” ou pelo “primitivismo cultural inerente”, como alegam xenófobos e racistas. A causa do aumento é o desemprego e a ausência de planos de bem-estar social. Enquanto Israel não regularizar esses processos, a pobreza e a humilhação estarão formando um ambiente propício ao crime. Nesse caso, a solução é a regulamentação e, não, a extradição.

Como podemos observar, não há qualquer fundamento empírico que sustente os principais argumentos  utilizados por aqueles que buscam a extradição dos refugiados de guerra que se encontram em Israel. Os dados estatísticos e os compromissos assumidos pelo governo israelense configuram uma realidade em que não há qualquer razão para negar asilo político aos 56 mil africanos que escaparam da condição caótica de seus países de origem. Mas, se a realidade não for suficiente para convencê-lo do direito que os refugiados de guerra possuem, analise a questão por uma perspectiva moral. Seria correto mandá-los de volta aos seus países de origem? Não elaborarei uma resposta a essa pergunta. Deixarei apenas como reflexão final as belas palavras do filósofo australiano Peter Singer :

(…) se está ao nosso alcance impedir que algo de mau aconteça sem sacrificar algo de importância moral comparável, nós devemos, moralmente, fazê-lo. Por “sem sacrificar algo de importância moral comparável” quero dizer sem causar nada que seja comparativamente mau, fazer algo imoral por si próprio ou deixar de promover um bem moral proporcional ao mal que podemos evitar. Esse princípio é quase tão incontroverso quanto o anterior. Ele exige de nós apenas impedir o que é mau e promover o que é bom. E exige isso de nós somente quando podemos fazê-lo sem sacrificar nada que, do ponto de vista moral, seja comparativamente importante.

A pergunta que Peter Singer nos coloca é a seguinte: há algum mal de importância moral comparável a concessão de asilo político aos 56 mil refugiados que se encontram em Israel? A resposta me parece óbvia: não. Sem mais, meretíssimo.

Fonte: Conexão Israel


Faça seu comentário

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <strike> <strong>

Voluntários

Loja Virtual

Em Breve
Close