A vida que se sobrepõe aos desafios

domingo, março 2, 2014

MSF sudao do sulMSF atua há aproximadamente três anos na região de Maban, no Sudão do Sul, em um campo de refugiados que abriga cerca de 122 mil pessoas, sendo cerca de 48 mil da região do Blue Nile, fronteira com o Sudão. A região sofre com várias necessidades, que abrangem desde educação até necessidades na área de saúde e saneamento.
Com a chegada da estação seca, entre o final de novembro e o início de dezembro, o país começou a mudar sua aparência de forma brusca. De um verde intenso e estonteante, começou-se a ver um amarelo, um cinza, uma cor que não pode fazer lembrar nada, senão a seca. O rio, que na estação das chuvas oferece peixes para alimento de muitas famílias e água pra irrigar a pouca plantação existente na região, começa a secar e o país, juntamente com o povo, começa a sofrer drasticamente com a falta de água e alimento. Em contraste com a tão trágica realidade, a região é beneficiada por programas de saneamento e distribuição de água que amenizam em muito o sofrimento e a realidade da população local.
Além dos problemas relacionados à seca, surgem novamente confrontos armados preocupantes no Sudão do Sul. Diversas regiões sofrem graves atentados e centenas de pessoas morrem vítimas de assassinos. MSF continua atuando bravamente em meio a uma crise no país mais novo do mundo. Até o momento, estima-se que milhares de pessoas foram mortas, diversos corpos foram encontrados em diferentes valas comuns com números realmente altos de pessoas executadas. A organização continua firme na oferta de suporte para salvar e ajudar essas pessoas em meio a esta crise.
Em dias de emergência como os que temos vivido no Sudão do Sul, sentimos de forma muito direta o quanto somos humanos. Estar aqui em meio a um momento delicado como este não é tarefa fácil, tampouco simples de se realizar. Se partirmos de um prisma de dificuldade somente, poderíamos descrever uma série de fatores que nos fariam desistir, ou simplesmente deixar o projeto neste momento. Mas não entendo assim, e prefiro não ver dessa forma. Se estou disposto a ajudar em momentos de estabilidade política, devo, de forma direta e destemida, estar disposto a continuar o trabalho em momentos de instabilidade também, afinal, são os mais necessitados, os discriminados e as vítimas da sociedade e das circunstâncias os beneficiados pela nossa ajuda, e somente poderemos oferecê-la permanecendo aqui. Assim, vamos em frente. Em frente com a ajuda aos que sofrem de dores maiores, e de menores também; vamos em frente com a atenção necessária no momento de aflição; vamos em frente aliviando os que precisam da nossa atenção e oferecendo carinho tanto quanto medicamentos e curativos; vamos em frente com aquela palavra de calma, ainda que o momento não gere, naturalmente, calma interior; e vamos em frente nos renovando dia a dia e tentando dar o máximo de suporte que se pode dar em um  momento como esses. É com este espírito que nos primeiros dois meses de 2014 MSF já havia feito 6.682 atendimentos somente nas clínicas onde eu trabalho no campo de refugiados de Doro.
Estar aqui fazendo parte deste projeto tão nobre é um privilégio. Se eu não estivesse aqui, teria perdido a oportunidade de participar da vida de mais de 143 crianças em nosso programa de nutrição nas unidades em que sou supervisor; teria perdido a oportunidade de assistir os desidratados, os picados por insetos venenosos; teria perdido a oportunidade de fazer boas escolhas para pacientes que precisaram da minha decisão para ter sua condição melhorada; teria perdido a oportunidade de participar na imunização de centenas de pessoas que precisam estar protegidas; teria perdido a oportunidade de auxiliar no resgate de pessoas vítimas de queimaduras e acidentes domésticos; teria perdido a chance de ver meu pessoal trabalhando feliz com melhores condições de trabalho; teria perdido a oportunidade de ver rostos felizes ao receber um chamado para um novo emprego; teria perdido a chance de ver vidas sendo mudadas.
À parte a violência e a seca, multiplicam-se também as pessoas vítimas de animais peçonhentos, como escorpiões e serpentes. A quantidade de pacientes que recebemos em nossa clínica acometidos por esses animais é relativamente significativa. Há alguns dias, recebemos uma paciente que viajou três dias da fronteira até aqui para receber tratamento para uma gangrena. Infelizmente, foi preciso amputar sua perna para que sua vida fosse salva. Em meu último plantão noturno, recebi dois pacientes, sendo o primeiro uma mulher de 16 anos, grávida do segundo filho, picada por uma das venenosas serpentes da região. De um segundo para o outro, foi preciso intervir da forma mais eficaz e rápida possível para salvar a vida desta mulher e evitar complicações. Que bom que MSF possui todos os medicamentos que necessitamos para oferecer a ajuda em tempo oportuno. Como equipe, abordamos rapidamente a paciente, puncionamos um acesso venoso, administramos vacina para evitar tétano, reidratamos, monitoramos sinais vitais e bastou uma simples chamada por rádio para o técnico médico de referência para que o soro antiveneno fosse disponibilizado.
Quando terminamos o acesso a esta paciente, chegou outro paciente, desta vez um jovem de 15 anos, picado por um escorpião. As espécies de escorpiões nesta região da África são geralmente muito venenosas. Também oferecemos acesso rápido, para aliviar a dor e evitar complicações como tétano e choque. Quando terminei todo o acesso e admissão do segundo paciente, chegou um terceiro, de 26 anos, diabético. Acessamos rápido, pois pelos dados vitais e pelo que a condição geral nos mostrava a situação também precisava de uma intervenção direta e rápida para evitar complicações e salvar a vida do paciente. Nesse momento, vemos o quanto um bom trabalho em equipe é importante. Cada pessoa envolvida na intervenção, seguindo o mesmo protocolo com tarefas claras e eficazes, contribui para o resultado rápido, como o que vimos no final do plantão. O mesmo paciente que chegou prostrado, confuso, vomitando e com extremidades frias, em menos de duas horas estava sentado, conversando e até andando pela unidade. E as duas vítimas de animais peçonhentos, poxa, terminaram bem, estáveis, bem assistidas, bem cuidadas, receberam todo o cuidado adequado e continuam suas vidas normalmente. Parece que vejo o alívio substituindo o medo inicial e penso ‘o que seria dessas pessoas sem MSF nesta região, onde na maioria dos casos ninguém quer ir?’.
Não posso descrever exatamente quantas vidas a intervenção de MSF salva semanalmente neste campo de refugiados, mas tenho certeza que se não estivéssemos aqui atuando de forma séria, a população estaria, sem dúvida, reduzida a menos da metade.
Não posso deixar de lembrar que a seca, por exemplo, mata mais do que qualquer enfermidade, pois onde não há acesso adequado à água potável, não existe comida, não existe higiene, não existe saúde. A seca chegou e com ela a água que MSF provê todos os dias, que trás vida e solução pra esta região, pra esses milhares de refugiados, com quem tenho o privilégio de conviver todos os dias.
Às vezes quero resumir sentimentos, emoção, trabalho, desafios, receios, instabilidade e privilégios, tudo em uma palavra. Neste momento, a palavra que melhor se encaixa é vida!
Denílson Borges – Enfermeiro
Fonte: MSF

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