Constituinte da dinâmica preparatória da Comigrar, as Conferências Livres se apresentam como um espaço privilegiado de debate e discussão acerca de políticas públicas sobre os migrantes e suas vivências. É, sem dúvida alguma, a etapa mais democrática do processo, que, não por acaso, é chamada de ‘Livre’, podendo ser promovida por qualquer grupo articulado de pessoas ou organização não governamental que tenha relação ou interesse pela temática migratória.
Um dos temas abordados de forma intensa no Ciclo de Conferências Livres que ocorreu no Rio de Janeiro foi também alvo de debate em outras Conferências Livres: o Novo Estatuto do Estrangeiro.
A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), por exemplo, sediou uma Conferência Livre que teve seu debate direcionado pela necessidade de construção de um Estatuto de proteção ao migrante. Segundo a professora Giuliana Redin (UFSM), Coordenadora do Projeto de Pesquisa “Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional”, “é necessário que o texto substitutivo do projeto de lei que tramita no Congresso Nacional seja estruturado a partir de uma nova racionalidade, do direito humano de migrar, e, portanto, incorpore direitos e mecanismos de respeito à condição de vulnerabilidade do migrante, abolindo-se a perspectiva da defesa nacional que orienta a atual política nacional de imigração”.
Outras conferências, não tiveram uma temática tão delimitada. No entanto, a questão da legislação e sua necessidade de melhoramento a partir de uma ótica mais humanitária foi recorrente.
A Conferência Livre Estadual do Rio Grande do Norte sobre Migrações e Refúgios, sediada na Ordem dos Advogados do Brasil, teve propostas apontadas pelos participantes e, dentre elas, o aperfeiçoamento da legislação atual relacionada ao estrangeiro que reside e adentra em solo brasileiro, visando promover maior celeridade e transparência no processo de regularização para que não seja necessário renunciar à cidadania de origem – garantindo, dessa forma, o respeito à diversidade e à cidadania cultural. Além disso, foi sugerida a criação de Centros de Referência a Migrantes e Refugiados em cada um dos estados brasileiros, que seriam dotados de equipes multidisciplinares, com uma variada gama de profissionais, devidamente capacitada para receber migrantes e refugiados e promover a inserção social, econômica e produtiva deles no Brasil.
A filial catarinense da Cáritas Brasileira realizou a Conferência Livre sobre Migrações e Refúgio na sede da CNBB em Santa Catarina, Florianópolis. Três prioridades foram eleitas pelo grupo – que contava com estudantes universitários, agentes de pastorais, profissionais de assistência social e refugiados sírios. Eram elas: a reformulação paradigmática do Estatuto do Estrangeiro; a formulação de uma cartilha para estrangeiros migrantes, apontando a porta de entrada para os serviços públicos e seus direitos; e, por fim, a criação de visto para refugiados. Outras propostas envolviam a temática educacional, como a inclusão da questão da “xenofobia” no percurso educacional e a capacitação lingüística em outros idiomas para funcionários públicos que trabalham diretamente com a entrada de migrantes, como os funcionários da Polícia Federal.
No início do mês de março, o Centro de Referência em Direitos Humanos da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) realizou a Conferência Livre da Fronteira Sul sobre Migrações e Refúgio – que contou com um mecanismo eficiente para possibilitar a maior interação de migrantes: a tradução simultânea do português para o crioulo e francês realizada pelo haitiano Espera Edwing, eleito delegado da Conferência. Os setenta participantes do evento dividiram-se em cinco grupos e realizaram o levantamento das dificuldades encontradas pelos imigrantes e, além disso, propuseram possíveis soluções aos problemas por eles identificados. Entre as propostas votadas, destacam-se a isenção ou redução da taxa de transferência bancária para os cidadãos em situação de refúgio; a oferta de oportunidades de emprego condizentes com a formação dos imigrantes – não se limitando a atividades que não requerem qualificação; e o respeito das convenções trabalhistas internacionais por parte das empresas, principalmente aquelas que garantem o direito de intervalo entre turnos e estipula a jornada máxima de até oito horas diárias. Ao final da conferência foram eleitos dois delegados, o haitiano Espera Edwig, já citado anteriormente, e o senegalês Cheikou Diallo.
Outro haitiano que se destacou foi Brutus Theodore, que possibilitou aos participantes da Conferência Livre sobre Refugiados, realizada pela Igreja Batista da Mata da Praia, desfrutar de sua apresentação musical ao fim do evento. A conferência foi idealizada com o objetivo de dialogar sobre os problemas vivenciados pelos refugiados no Brasil e debater propostas que constituíssem respostas práticas para uma maior qualidade de vida e dignidade humana dessas populações. O evento, que ocorreu em Villa Velha, teve o debate iniciado a partir da explicação do missionário americano Weston Rayborn sobre a realidade enfrentada pelos refugiados da Síria no Estado do Espírito Santo.
Ocorrida na Câmera de Vereadores, a Conferência Livre de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, também contou com a presença de imigrantes – especialmente senegaleses e bengaleses residentes na cidade. Buscando permitir e facilitar o diálogo, foram providenciadas traduções simultâneas em francês e bengali, uma das iniciativas reivindicadas por essas comunidades para participação. Além da necessidade de entender a língua portuguesa, foi manifestado também o interesse de vencer a dificuldade para conseguir emprego e a desburocratização quanto à regularização de documentos para estrangeiros.
Mamour, senegalês que vive no Brasil há cinco anos, foi um dos voluntários na tradução de português para francês durante a Conferência e aproveitou a ocasião para passar uma mensagem para sua comunidade presente. “Caso venham a sofrer discriminação na rua, não partam para a violência, mostrem sua educação e sigam seu caminho, pois não temos condições de mudar a cultura de cada país que passamos. Agora, a questão migratória, essa sim, podemos contribuir aproveitando a oportunidade que o governo está nos proporcionando através dessa conferência”, disse orgulhoso se referindo a Comigrar.
Os senegaleses mais uma vez marcaram a etapa preparatória da Comigrar com sua participação – de forma intensamente ativa. Cerca de 300 Senegaleses participaram da Conferência Livre organizada pela Associação dos Imigrantes Senegaleses de Caxias do Sul, em parceria com o Centro de Atendimento ao Migrante, CAM – um número verdadeiramente expressivo.
Representantes de Bangladesh, por sua vez, estiveram presentes na Conferência Livre em Samambaia, assim como participantes oriundos da Síria e do Paquistão. O encontro durou cerca de quatro horas e uniu imigrantes alunos do curso de português oferecido pelo Instituto Migrações e Direitos Humanos – IMDH – que contou com o apoio de alunos da Universidade de Brasília – UNB. Como delegados foram indicados uma refugiada Síria e um imigrante, que é também solicitante de refúgio, de Bangladesh.
Quanto aos refugiados da Síria no Brasil, a Organização Não Governamental Missão em Apoio à Igreja Sofredora (ONG Mais) promoveu uma Conferência Livre especialmente para reuni-los, em Villa Velha – Espírito Santo. A Conferência Livre de Refugiados da Síria no Brasil, que reuniu cerca de trinta pessoas, teve a comunicação efetuada em inglês e português, enquanto um dos sírios traduzia para os demais em árabe. Os principais eixos debatidos durante a Conferência foram a igualdade de tratamento e acesso a serviços e direitos e a inserção social, econômica e produtiva. “Os refugiados apresentaram, principalmente, grande preocupação com relação a emprego e moradia. Uma das reivindicações é a construção de políticas que atuem contra a discriminação, promovendo a inserção desse público no mercado de trabalho”, conta Sindra, Assessora Jurídica e missionária da entidade.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) promoveu, em Manaus, a Conferência Livre para Refugiados e Solicitantes de refúgio. Participaram do encontro 18 refugiados que, na ocasião, conheceram mais sobre o processo de contribuição para Comigar e foram estimulados a organizar outros debates entre o público migrante e refugiado. Além disso, foram nomeadas as delegadas que irão integrar a etapa nacional da Comigrar. “São duas mulheres colombianas, com experiências muito interessantes e que se comprometeram a atuar no processo dos debates”, destaca Isabela Mazão, Assessora de Proteção da Acnur.
Peruanos e espanhóis também estiveram presentes na fase preparatória para Comigrar Nacional e se reuniram, durante a Conferência Livre realizada em Tabatinga (AM), com representantes da Pastoral da Mobilidade Humana da Diocese do Alto Solimões. A região tem cerca de 10 mil imigrantes provindos do Peru e, em decorrência disso, enfrenta questões peculiares à realidade da migração na fronteira e a constante movimentação de pessoas na área. Na ocasião, os participantes apresentaram suas principais dificuldades, como legalizar a situação de migrante no país. Entre as propostas elaboradas no evento, que serão enviadas para análise dos organizadores da Comigrar, está a instalação de um consulado na região.
A 1ª Conferência Livre de Corumbá Sobre Migrações e Refúgio: Integração pela Fronteira, por sua vez, ocorreu no auditório do Campus do Pantanal (UFMS) – reunindo refugiados, migrantes, estudiosos, servidores públicos e profissionais envolvidos na temática migratória. De acordo com o professor Marco Aurélio Machado de Oliveira, coordenador do Mestrado em Estudos Fronteiriços (UFMS), as questões de cunho econômico e político ainda são as que mais promovem o fluxo migratório no mundo. Ainda segundo ele, o desenvolvimento local obrigatoriamente passa por questões que envolvem a migração. “Corumbá já é uma integração que ocorre em todos os níveis, mas precisamos amadurecer politicamente”, pontuou.
Uma das Conferências Livres ocorreu em um ambiente distinto dos demais: no presídio. O Complexo do Curado na Unidade Prisional – Presídio Juiz Antônio Luiz Lins de Barros, localizado no Recife, recebeu uma Conferência Livre com a participação de 12 presos estrangeiros oriundos do Chile, Peru, Venezuela, Alemanha, Irlanda, Tanzânia e Colômbia. Todos participaram de forma cooperativa na formulação das propostas e na votação das mesmas. A informação se encontra na página da Comigar no Facebook que, infelizmente, não conta com maiores informações a respeito dela.
Um ponto a ser exaltado na Comigrar – e isso inclui suas etapas preparatórias – é a possibilidade de confrontar a teoria com a experiência prática e concretizar as observações em propostas reais de melhoria. Esse ponto foi ressaltado pela Juliana Serra, aluna de Relações Internacionais, que já se deparou inúmeras vezes com a temática imigratória em sala de aula. Na Conferência, encontrou uma oportunidade de unir os âmbitos teórico e prático, podendo concretizá-los em propostas. “De fato, a integração social e o desconhecimento da sociedade acerca do assunto me parecem os principais problemas que precisam ser solucionados. Sabemos que existem pessoas, entidades e organizações que se dedicam à causa. Um Projeto de Lei novo pode potencializar sua atuação junto à população”, concluiu. Juliana participou da Conferência Livre da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM) na Unisinos em parceria com a Associação Antônio Vieira (ASAV). Após o debate, foram escolhidos por votação 15 propostas para serem apresentadas na Etapa Nacional da Comigrar. As propostas indicaram a necessidade de inclusão do tema em currículos do ensino médio e fundamental, a elaboração de análises transversais sobre o tema e a criação de núcleos de apoio ao migrante em Universidades.
A Cáritas Arquidiocesa de Porto Alegre realizou, em parceria com o Centro de Orientação ao Migrante-COMIG, o CIBAI-Migrações e a CNBB Sul3, a Conferência Livre de Porto Alegre sobre Migrações e Refúgio. A atividade foi coordenada pelo jornalista da Cáritas Arquidiocesana, Elton Bozzetto e contou também com a participação do Superintendente Executivo, Ivo Guizzardi, e do membro da Equipe Técnica, Edson Schirmer. No evento, ressaltou-se que as entidades católicas constituem a primeira porta aberta encontrada pelo migrante quando chega ao país e a necessidade de implementar uma ação conjunta entre a sociedade e o Estado, uma vez que o movimento migratório tem se acelerado em todas as regiões do país. “O Brasil tornou-se um pólo de chegada de muitos migrantes. Precisamos garantir o direito de hospitalidade, a acolhida e o respeito à dignidade, porque os migrantes buscam melhores condições de vida para si e para suas famílias, em nosso país”, pontuou Guizzardi.
Ao final, foram contabilizadas treze propostas aprovadas que serão enviadas à Comissão Organizadora Nacional para análise e aprovação na Conferência Nacional. Entre elas, as temáticas envolvem a criação de linha de crédito para projetos de geração de renda e sustentação, criação de estruturas receptivas, fomento a atividades de mediadores culturais, implementação de políticas de acesso à saúde, moradia, educação e trabalho e, por fim, acesso aos programas sociais públicos e implementação de banco de dados sobre a entrada de migrantes no país.
Para finalizar, uma conferência também se destacou por trazer a tona uma temática diferenciada: a Conferência livre sobre Migração LGBT, Tráfico de Pessoas e Refugiados, organizada pela GDA Anápolis. O encontro aconteceu no em Anápolis/GO, e contou com representantes de instituições e ONG’S de defesa de direitos.
É possível concluir, a partir de tudo que foi exposto anteriormente, que a dinâmica preparativa da Comigrar Nacional se concretizou de forma bem sucedida, graças aos esforços de todos os organizadores, participantes e pessoas mobilizadas. Uma oportunidade de debate como essa não poderia ser desperdiçada – e não foi. Como vimos, muitos assuntos foram problematizados e, mais importante, buscou-se uma solução, a partir da elaboração de políticas públicas, para solucioná-los. Mais do que expor problemas, portanto, é necessário pensar em soluções e, como exposto, isso foi amplamente realizado em diversas partes do território nacional.
Fonte: O Estrangeiro