Ódio e tragédia na República Centro-Africana

terça-feira, abril 29, 2014

Conflito entre muçulmanos e cristãos choca pela barbárie, observada de perto pela psicóloga Vanessa Cardoso. “Crianças, idosos e grávidas não são poupados”

População centro-africana no campo de Don Bosco, que abriga mais de 30 mil pessoas que fogem dos conflitos no país

População centro-africana no campo de Don Bosco, que abriga mais de 30 mil pessoas que fogem dos conflitos no país

Em dezembro de 2013, a instabilidade política provocada por um golpe de Estado na República Centro-Africana (RCA) desencadeou mais uma tragédia na África. Ataques violentos de milícias cristãs a minorias muçulmanas obrigaram quase um milhão de pessoas a sair de suas casas à procura de locais seguros para sobreviver. Segundo a estimativa da ONU, o confronto gerou 935 mil refugiados e deslocados até aqui, aproximadamente 20% da população do país, um número que dá a medida do desastre.

Os centro-africanos, que fogem de estupros, incêndios e ataques de machete, refugiam-se tanto em países vizinhos, como Chade, República Democrática do Congo e Camarões, quanto em áreas para deslocados internos, como o campo criado no aeroporto de Bangui, capital do país. Este campo, que abriga sob condições precárias mais de 70 mil pessoas, recebeu no começo do mês de abril a visita do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. A reação de Ban, publicada em um artigo no site da ONU, demonstrou a sua desolação com a situação vivida pela população da RCA: “Nada poderia ter me preparado para a minha chegada em Bangui”.

O choque de Ban Ki-moon foi experimentado pela psicóloga brasileira Vanessa Cardoso. Ela atuou na RCA como integrante do Médicos Sem Fronteiras (MSF), e permaneceu entre os meses de janeiro e fevereiro no campo de Don Bosco, também em Bangui, que serve de abrigo para mais de 30 mil refugiados. A psicóloga atendeu idosos, mulheres e crianças que testemunharam violências de guerra traumatizantes. “As pessoas que nos procuravam eram aquelas que tinham reações ou sintomas relativos às situações de violência, vividas diretamente ou sofridas como testemunha.”

Relatos de dor de cabeça, dor de estômago e falta de sono que não recebiam diagnósticos conclusivos dos médicos eram encaminhados à psicóloga. Cardoso detectava danos psicológicos na população atendida. “Atendíamos casos de depressão, depressão severa, ansiedade, mas, principalmente, casos de estresse pós-traumático. Eram pessoas que tinham flashback das memórias que viveram recentemente, e por consequência, não dormiam bem e tinham pesadelos”.

Ódio
As formas como os ataques acontecem no conflito da RCA chocam pela barbárie. O machete, espécie de faca grande e afiada utilizada por caçadores e pescadores, parecia ser a principal arma usada nos ataques dos quais Vanessa ficou sabendo. “Muitas pessoas falam de armas de fogo nesses conflitos, mas eu me surpreendi muito com o número de casos em que foi usado o machete”, afirma. “Mesmo populações que a gente chama de mais vulneráveis, como crianças muito pequenas, idosos e mulheres grávidas, não foram poupadas. O tipo de ferimento causado pelo machete é devastador. Eu nunca tinha visto coisas do gênero.”

Outro ponto que chamou atenção de Cardoso entre os casos que atendeu foi a violência sexual sofrida pelas mulheres. O estupro era utilizado como arma de intimidação, pois, muitas vezes, ocorria em frente às famílias das vítimas e em lugares públicos. “A gente teve muitos casos de mulheres que foram violentadas sexualmente. Algumas nos traziam um discurso de sofrimento psíquico, mas a principal preocupação daquelas mulheres era muito mais ‘será que contraí HIV?’ ou ‘será que contraí sífilis?’”, conta a psicóloga. “Com o desenrolar das sessões, as vítimas já levantavam questões como ‘não tenho dormido’ ou ‘tenho pensado constantemente nessa violência’”.

Testemunhar o assassinato de toda a sua família fez com que o adolescente Prince, de 15 anos, chegasse às sessões de atendimento ministradas por Cardoso com uma fisionomia dura e revoltada, carregando sempre uma mochila nas costas. “Quatro dias antes, a casa dele havia sido invadida, mataram todas as pessoas da família dele. Ele se fez de morto em algum cômodo da casa, mas escutou tudo. E, quando conseguiu sair da casa, foi obrigado a passar por cima dos corpos dos familiares dele e depois, testemunhar a casa pegando fogo”, conta Vanessa.

A medida em que Prince foi contando sua história nas sessões de terapia de grupo e ouvindo o ocorrido com os outros pacientes, no entanto, sua fisionomia foi ficando menos dura. Finalmente, no dia da despedida, Vanessa aproveitou para perguntar, fora do contexto terapêutico, o que o jovem carregada em sua inseparável mochila. “Ele voltou à casa dele e pegou os pedaços que haviam sobrado da casa dele. Para ele, era muito importante carregar aquela mochila o tempo todo. Ele andava com o que sobrou da sua casa nas costas.”

Um dos focos da psicóloga era a ressocialização dessas pessoas. “Um cirurgião encaminhou pra nós um caso de um jovem de 22 anos que havia passado por uma tentativa de degolamento. Foi uma situação extrema de violência, ele foi torturado e ameaçado, e sofreu golpes no corpo com o machete. Ele estava trabalhando, vendendo verduras na rua quando sofreu a tentativa de assassinato.” Esse jovem teve de caminhar, conta Cardoso, com o corte feito pelo machete no pescoço, até o hospital, sob risco de sofrer novo ataque. “Até a área próxima ao hospital que estávamos era bastante perigosa” conta a psicóloga. Neste caso, Cardoso tentou fazer com que essa vítima, bastante traumatizada, voltasse a trabalhar. “A família dele dependia desta renda.”

Histórico
Os ataques que impulsionaram os centro-africanos a saírem de suas casas tiveram início em 2012, quando os Séléka, milícia muçulmana anti-governo, tomou regiões no norte e nordeste do país. As ofensivas só tomaram atenção mundial, no entanto, em março de 2013, quando o presidente eleito, François Bozizé, foi retirado do poder pelos Séléka liderados por Michel Djotodia. O golpe fortaleceu as tensões político-religiosas no país, que tem maioria cristã (65% da população, ante 15% de muçulmanos).

Nove meses depois, em 5 de dezembro de 2014, milícias cristãs conhecidas como anti-balaka responderam à tomada de poder pelos muçulmanos e iniciaram uma série de ofensivas violentas contra a população desta religião. Desde então, o caos e o terror assolaram a República Centro-Africana, piorando o já trágico quadro social do país. A RCA, independente desde a década de 1960, foi um território colonizado por franceses e, como muitos dos países do continente africano, tem um dos mais baixos indicadores sociais do mundo. O PIB per capita é de 483 dólares, segundo o Banco Mundial, a expectativa de vida é de 48 anos e, de cada mil crianças, 129 morrem antes de completar cinco anos, principalmente de malária, desnutrição, meningite e diarreia.

A situação na RCA parece longe de uma melhora expressiva. A população dentro dos campos de deslocados encontra-se protegida por exércitos internacionais, mas à mercê da subnutrição, malária e falta de água potável. Os centro-africanos que não se mudaram estão expostos à guerra entre Sélékas e anti-balakas e continuam reféns das demonstrações de força covardes que as milícias infligem àqueles que são inocentes mas estão no meio do fogo cruzado. No começo do mês, a ONU criou uma missão de paz com 12 mil membros, sendo 10 mil militares, para proteger os civis na RCA. O número de centro-africanos que necessita de ajuda humanitária já atingiu 2,2 milhões. Em seu relatório pós-visita, Ban Ki-moon relembrou o genocídio perpetrado em Ruanda, há vinte anos, movido por razões semelhantes às que movem as milícias inimigas na RCA. “Como eu vi em Ruanda, as comunidades que passaram por trauma nacional maciço podem aprender a viver juntas mais uma vez em relativa harmonia. Esse é o espírito que os líderes e o povo da RCA devem reacender. A comunidade internacional tem uma oportunidade de ajudar – e uma obrigação de agir.”

No período em que esteve no país, Cardoso percebeu, nos testemunhos de seus pacientes, que os campos eram coabitados por cristão e muçulmanos e que, mesmo antes dos ataques e do golpe, essas populações coexistiam sem questionamentos. Cardoso observou, entretanto, que os ataques fazem crescer o ódio e revanchismo na população. “Hoje, existem duas populações, cada uma de um lado, que se odeiam e por conta disso pensam e agem com revanchismo”, diz. “Não há acordo de paz que dê conta disso, ao menos no curto e no médio prazos”.

Fonte: Carta Capital


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